quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Mal Dos Trópicos - Apichatpong Weerasethakul (2004)


Um dos melhores exemplares do cinema sensorial contemporâneo, Mal Dos Trópicos é um filme que disserta sobre o real e o fantástico, que dividem a tela com naturalidade. O diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, famoso pela sua overdose de lirismo e idiossincrática habilidade de deslumbrar, nos presenteia com uma obra que exalta o pálpavel até uma condição de sensível, mimetizando suas angústias e prazeres individuais em planos amplos, de força inestimável e excelência estética.

Algo interessante nos filmes de Apichatpong é como o fantástico constantemente resulta em uma pregnância que enriquece o banal, o cotidiano. O valor do fantástico não é meramente apuramento estético, ele funciona como uma maneira de exprimir a memória e as lembranças que nos compõem - a imaginação aqui funciona como uma realidade psicológica. Também não é à toa o fato do diretor tailandês ter estreado no audiovisual com a videoarte: as heranças estéticas que ele conquistou nos trabalhos iniciais foram imprescindíveis para o sucesso nos seus filmes recentes, que flertam constantemente com conceitos da videoarte. Isso traz uma fruição ao objeto artístico, uma certa sutileza na interpretação e uma pretensão positiva que elevam o filme à condição de essencial.

O filme conta a história de um casal homossexual tailandês composto por um soldado, Keng, e por um camponês, Tong. Durante a primeira parte do filme, acompanhamos o cotidiano dos dois, durante sessões de cinema, viagens de ônibus e diálogos informais. A primeira parte, naturalista, um tanto bucólica, apresenta a essência do que viria a ser discutido - ou melhor, sentido - na segunda metade do filme, onde a narrativa deixa de remeter ao convencional, e a atmosfera vai ficando mais densa, claustrofóbica, e o filme alcança seu ápice estético e intelectual, com uma narrativa fragmentada passada em uma selva e uma insólita trama que vai deslumbrando conforme vai se estendendo até seu desfecho sensacional.

No fim, resta apenas a selva - e uma melodia minimalista que vai sendo incorporada melifluamente em nossos psicológicos conforme a sequência imagética vai sendo cuidadosamente construída. No fim, resta apenas uma lembrança suave do discurso moral do filme, que é exaltado ao sublime através de sua sutileza.

"Você escuta?"

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Plataforma - Jia Zhangke (2000)


"A plataforma longa e vazia. A espera parece interminável. Os grandes vagões estão carregando... Meu amor de vida breve. A plataforma longa e vazia. Solitários, só podemos esperar. Todo o meu amor indo embora. Nada há no trem que vem. Meu coração espera, espera para sempre... Espera para sempre..."

Jia Zhangke é um dos cineastas mais importantes da contemporaneidade. Não apenas pela sua inovação estética - minimalista na abordagem imagética e fortemente crítica no extra campo de suas obras - mas também pela capacidade do diretor de expor as falácias da China moderna sem tornar suas obras pessimistas (a priori), pretensiosas ou maçantes. As bruscas mudanças culturais no país são apresentadas sutilmente, assim como as mudanças psicológicas de suas personagens, que vão sendo reveladas com cuidado cirúrgico e amadurecidas lentamente.

Em Plataforma, o diretor expõe as mudanças sociais, ideológicas e principalmente culturais que a China sofreu durante o fim da década de 70 e ínicio da década de 80, quando as alterações impressas no oeste do país durante a Revolução Cultural foram atingindo o interior, e uma compania de teatro que anteriormente fazia músicas de cunho coletivista, exaltando gêneros musicais majoritariamente chineses, que vai vagarosamente tendo sua estética artística alterada por censuras sociais e políticas - a cultura pop de origem ocidental vai varrendo o país, minimizando a cultura essencialmente chinesa.

O filme expressa um sentimento de insegurança cultural, de perda de referências, que se intensificava na China através da afirmação das individualidades advinda do fortalecimento da dinâmica capitalista na cultura chinesa. A censura do Partido (não apenas artisticamente, mas politicamente também) acaba gerando uma auto censura endêmica na sociedade - a estrutura intelectual do país é fragilizada.

Jia Zhangke filma em planos amplos, demorados, cuidadosamente construídos, expondo personagens idealistas tendo seus planos futuros lentamente erodidos pela dura realidade social do país. A cena em que a dançarina, sonhadora, dança sozinha em seu quarto é um dos momentos mais belos do cinema contemporâneo - é fantástico como as personagens de Plataforma permanecem alegres, vivas, apesar do sofrimento silencioso que permeia suas ações.

Exemplar contemporâneo do cinema político, Plataforma é, acima de tudo, um filme sobre a vida, e como é importante manter-se intelectualizado e crítico em uma sociedade brutal. É uma elegia à existência humana, à individualidade, ao ideal coletivista em contraponto com a voracidade moral de um país confuso e desenfreado - uma das maiores obras do novo século.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

35 Doses De Rum - Claire Denis (2008)


Em 35 Doses De Rum, Claire Denis estabelece um paralelo crítico sociopolítico entre as relações familiares de um núcleo social, contidas na diegese fílmica de 35 Doses De Rum, com a sociedade francesa moderna, brevemente apresentada no filme, porém muito bem explorada no extra-campo da obra (a França é filmada na periferia, com músicas africanas, panelas de arroz japonesas, bares jamaicanos - muito distante do cosmopolitismo normalmente associado ao país). Retratando magistralmente pequenos conflitos familiares e expandindo seus conceitos, a diretora foi capaz de criar uma obra de fortíssimo valor estético e crítico - 35 Doses De Rum é uma das obras mais sensíveis do cinema contemporâneo.

O filme inicia-se com belíssimas imagens de um trem em movimento, expandindo posteriormente o valor dos trilhos do trem para proporções metafísicas (estabelecendo forte relação com o filme Pai e Filho, filme de 1949 do genial Yasujiro Ozu). Mas, enquanto no filme de Ozu esse trem é filmado a partir de plataformas, no filme de Denis estamos dentro do trem, olhando para os trilhos. Uma diferença estética relativamente sutil, porém que adquire valores reflexivos distintos na diegese dos filmes: enquanto em Ozu as análises humanas tendem a ser mais objetivas, aqui elas adquirem subjetividade. As personagens de 35 Doses De Rum transitam à margem dos trilhos, em conflitos silenciosos que falaciosamente tendem a ser creditados como inofensivos, porém que caracterizam uma crise sutil naquele núcleo de amizades. E essas crises sociais apresentadas microscopicamente são por sua vez relacionadas com crises sociais macroscópicas - adquirindo reflexão acerca de valores de hierarquia até entre países.

Mas a diretora não se contenta em estabelecer essa fantástica comparação: ela vai mais a fundo, e questiona - não necessariamente impõe - até que ponto a hierarquia sistemática mundial é dispensável (ela não nega a demagoga imoralidade no sistema, nem exalta a inércia, ela apenas defende que reações extremistas não são uma solução). Uma das personagens mais importantes do filme, um amigo do protagonista que também é condutor (condição apresentada não ao acaso) encontra-se desiludido por estar aposentado e não saber o que faz da vida após o fim do seu trabalho nas plataformas de trem. Não revelando detalhes sobre a obra, deixemos assim: o filme discute a dependência do sistema na vida das pessoas. É comum as pessoas condenarem a maneira como a hierarquia se dá, seja ela política ou social, porém raramente elas se dão ao trabalho de analisarem como ou por quê essas relações se estabelecem. Assim como em O Demônio Das Onze Horas, 35 Doses de Rum discute os limites da liberdade, demonstra o quão ilusório é o livre arbítrio e como essas relações - sejam elas amorosas, familiares, laboriais - possuem uma interdependêcia inegável.

Veja a personagem Joséphine: ela pode a qualquer momento abandonar seu pai e viver sua vida, mas ela não o faz: não por quê não quer, e sim por quê não pode. Ou por quê pode mas não quer? Olhe seu namorado: ele é livre para ir embora, até ensaia vender o apartamento, mas no fim do filme o vemos preso no mesmo sistema, seja por vontade própria ou necessidade social.

Agora o filme não se demonstra totalmente inerte em relação às críticas apresentadas: chega em um ponto do filme em que a família tem que confrontar o passado. A contingência da morte no sentido mais analítico não é o problema - o gato vai para o lixo depois de morto - mas sim a ausência que gera consequências devastadoras. O vácuo entre o corpo e a câmera de Denis remete ao vazio existencial das personagens - os problemas acabam sendo expostos quando a crise se alastra. E no fim as 35 doses de rum são tomadas, celebrando o que permanece tangível: a vida.

As personagens estão em constante conflito, porém raramente este é expresso verbalmente, adquirindo grande subjetividade. A relação entre o pai e filha é sufocante, mas é inegável o amor incondicional de ambos. Esse paradoxo estabelece relações inclusive com a vida - a dicotomia metafórica associada aos trilhos do trem está aí.

Agora o que realmente torna o filme uma obra prima de valor inestimável para o cinema contemporâneo é a sensibilidade da diretora em filmar a história. É notável como ela é capaz de expor o que há de mais condenável na psicologia humana e ao mesmo tempo exaltar a humanidade como um todo, mantendo sempre uma beleza incompreensível permeando todo o sofrimento existencial nas suas tramas. Basta pegar qualquer cena de olhares entre as personagens para saber que se trata de uma obra maior do cinema.