terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O cinema não é uma linguagem propriamente

            O artigo publicado por Christian Metz em 1964 “Le cinéma, langue ou langage?” se debruçou sobre um tema delicado: o cinema possuiria um sistema de linguagem (langue), sendo esse sistema um repertório de códigos simbólico, ou estaria ele condicionado a uma noção de linguagem livre (langage), um discurso espontâneo, auto-regulado? Em outras palavras, seria cinema efetivamente linguagem? E mais, seria possível a aplicação da semiótica no estudo hermenêutico do cinema?
      Metz inicialmente deconstrói fortemente a ideia de cinema como linguagem. Seu ataque sistemático se estrutura em alguns argumentos fundamentais que impedem a plenitude de tal associação: primeiramente, a relação entre significante e significado no cinema se dá de forma absolutamente distinta daquela na linguagem – imaginemos a palavra “cantar” e a associemos à imagem de alguém pronunciando sons de forma aparentemente melódica. Primeiramente, é possível alterarmos a palavra “cantar” para “canto”, “cantada”, “cantando”, fazendo uso de sufixos que não possuem nenhum referente substancial isoladamente, mas permitem variadas gradações de sentido à palavra em questão. Na linguagem, o operador deve compreender a função dos sons (fonemas, unidades dos significantes) e dos significados (monemas, unidades dos significados). Nesse sentido, o cinema não apresenta essa característica denominada dupla-articulação, apresentada pela linguagem.
Ao nos depararmos com uma imagem de uma pessoa cantando nós já temos um enunciado completo, uma sentença. No cinema o significado costuma estar intimamente associado ao seu significante, a codificação da imagem consiste em uma representação, uma imitação direta, não uma significação propriamente. A conotação aqui vem junto com a denotação. Finalmente, o cinema não trabalha em um nível de comunicação, mas de expressão. O cinema não é linguagem, a linguagem apenas faz uso dessa matéria já pressuposta para construir seus objetos¹. O cineasta não constrói um significado por meio de um repertório de códigos, ele organiza e indica um fluxo de expressão que já é condição natural do mundo e dele próprio. Um filme mostra, ele não significa.
            Metz primeiramente destrói a noção de cinema como linguagem para em seguida reconstruí-la sistematicamente. Utilizando conceitos apresentados pelos estudos de Saussure na linguística, ele consegue fazer uso da semiótica para a análise do cinema – seu célebre artigo inclusive termina com o aforismo “deve ser realizada a semiologia do cinema”. O cinema pode não ser propriamente uma linguagem, mas pode funcionar como uma. Metz analisa extensivamente em seu livro “Langage et Cinéma” como a significação no cinema se apresenta de maneira mais manifesta e, ao invés de intentar “ler” a matéria, algo que já é uma condição teoricamente dada, ele analisa numa dimensão além as leis que governam essas mensagens, a estrutura cinematográfica que permite a apreensão de determinados conceitos ou ideias. Esses códigos se manifestam ou especificamente (aspectos intrinsecamente cinematográficos, como por exemplo a montagem, o enquadramento) ou não-especificamente (por meio de significação cultural, associada a hábitos de percepção transmitidos pelo cinema mas não dependendo especificamente dele, como por exemplo o que uma determinada vestimenta de uma personagem diz sobre a mesma), sendo eles organizados em um sistema “textual” que se estrutura em eixos sintagmáticos (que remetem a uma horizontalidade, mais definidos pela narrativa, de onde podem ser extraídos códigos a partir da associação de eventos de determinada cena de acordo com anteriores) e eixos paradigmáticos (por sua vez remetendo a uma verticalidade, apresentando significado isoladamente, não sendo dependentes de outros momentos do filme para serem analisados).
Não é que não haja certa essencialidade nessa indagação metodológica, tal racionalização e fragmentação do cinema acarretaria em uma apreensão mais bem definida e facilmente disseminável da matéria como linguagem, até mais expansiva e possibilitadora em alguns casos. Mas considerar o cinema como um sistema fechado no qual se pode estabelecer significado através de codificação não concederia à experiência uma certa limitação? Pode-se até determinar tudo sobre um sistema, mas jamais ir além. Não se pode transcendê-lo.
        Analogamente aos esforços de Kant na filosofia, acaba-se expandindo as possibilidades de apreensão sensível para logo em seguida se estabelecerem limites, unificar e esquematizar um saber por meio de um enunciado transcendental, para não se permitir a imprevisibilidade radical do indefinido. É o medo da alienação do não-saber.
         Como buscar então o diálogo entre essas faculdades conflitantes da imagem? O visual sob a tirania do visível e o figurável sob a tirania do legível². Se deixar arrebatar pelo desconhecido, entregar-se ao turbilhão do fenômeno, ou limitar-se pela segurança da síntese?

[1] Gilles Deleuze, “L’image Temps”.
[2] Georges Didi Huberman, “Devant l’image”.

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