O
artigo publicado por Christian Metz em 1964 “Le cinéma, langue ou langage?” se
debruçou sobre um tema delicado: o cinema possuiria um sistema de linguagem
(langue), sendo esse sistema um repertório de códigos simbólico, ou estaria ele
condicionado a uma noção de linguagem livre (langage), um discurso espontâneo,
auto-regulado? Em outras palavras, seria cinema efetivamente linguagem? E mais,
seria possível a aplicação da semiótica no estudo hermenêutico do cinema?
Metz
inicialmente deconstrói fortemente a ideia de cinema como linguagem. Seu ataque
sistemático se estrutura em alguns argumentos fundamentais que impedem a
plenitude de tal associação: primeiramente, a relação entre significante e
significado no cinema se dá de forma absolutamente distinta daquela na linguagem
– imaginemos a palavra “cantar” e a associemos à imagem de alguém pronunciando
sons de forma aparentemente melódica. Primeiramente, é possível alterarmos a
palavra “cantar” para “canto”, “cantada”, “cantando”, fazendo uso de sufixos
que não possuem nenhum referente substancial isoladamente, mas permitem variadas
gradações de sentido à palavra em questão. Na linguagem, o operador deve
compreender a função dos sons (fonemas, unidades dos significantes) e dos
significados (monemas, unidades dos significados). Nesse sentido, o cinema não
apresenta essa característica denominada dupla-articulação, apresentada pela
linguagem.
Ao nos
depararmos com uma imagem de uma pessoa cantando nós já temos um enunciado
completo, uma sentença. No cinema o significado costuma estar intimamente
associado ao seu significante, a codificação da imagem consiste em uma
representação, uma imitação direta, não uma significação propriamente. A
conotação aqui vem junto com a denotação. Finalmente, o cinema não trabalha em
um nível de comunicação, mas de expressão. O cinema não é linguagem, a
linguagem apenas faz uso dessa matéria já pressuposta para construir seus
objetos¹. O cineasta não constrói um significado por meio de um repertório de
códigos, ele organiza e indica um fluxo de expressão que já é condição natural
do mundo e dele próprio. Um filme mostra, ele não significa.
Metz
primeiramente destrói a noção de cinema como linguagem para em seguida
reconstruí-la sistematicamente. Utilizando conceitos apresentados pelos estudos
de Saussure na linguística, ele consegue fazer uso da semiótica para a análise
do cinema – seu célebre artigo inclusive termina com o aforismo “deve ser
realizada a semiologia do cinema”. O cinema pode não ser propriamente uma
linguagem, mas pode funcionar como uma. Metz analisa extensivamente em seu
livro “Langage et Cinéma” como a significação no cinema se apresenta de maneira
mais manifesta e, ao invés de intentar “ler” a matéria, algo que já é uma
condição teoricamente dada, ele analisa numa dimensão além as leis que governam
essas mensagens, a estrutura cinematográfica que permite a apreensão de
determinados conceitos ou ideias. Esses códigos se manifestam ou
especificamente (aspectos intrinsecamente cinematográficos, como por exemplo a
montagem, o enquadramento) ou não-especificamente (por meio de significação
cultural, associada a hábitos de percepção transmitidos pelo cinema mas não
dependendo especificamente dele, como por exemplo o que uma determinada
vestimenta de uma personagem diz sobre a mesma), sendo eles organizados em um
sistema “textual” que se estrutura em eixos sintagmáticos (que remetem a uma horizontalidade,
mais definidos pela narrativa, de onde podem ser extraídos códigos a partir da
associação de eventos de determinada cena de acordo com anteriores) e eixos
paradigmáticos (por sua vez remetendo a uma verticalidade, apresentando
significado isoladamente, não sendo dependentes de outros momentos do filme
para serem analisados).
Não é que não
haja certa essencialidade nessa indagação metodológica, tal racionalização e
fragmentação do cinema acarretaria em uma apreensão mais bem definida e facilmente
disseminável da matéria como linguagem, até mais expansiva e possibilitadora em
alguns casos. Mas considerar o cinema como um sistema fechado no qual se pode
estabelecer significado através de codificação não concederia à experiência uma
certa limitação? Pode-se até determinar tudo sobre um sistema, mas jamais ir
além. Não se pode transcendê-lo.
Analogamente
aos esforços de Kant na filosofia, acaba-se expandindo as possibilidades de
apreensão sensível para logo em seguida se estabelecerem limites, unificar e
esquematizar um saber por meio de um enunciado transcendental, para não se
permitir a imprevisibilidade radical do indefinido. É o medo da alienação do
não-saber.
Como
buscar então o diálogo entre essas faculdades conflitantes da imagem? O visual sob
a tirania do visível e o figurável sob a tirania do legível². Se deixar
arrebatar pelo desconhecido, entregar-se ao turbilhão do fenômeno, ou
limitar-se pela segurança da síntese?
[1] Gilles
Deleuze, “L’image Temps”.
[2] Georges
Didi Huberman, “Devant l’image”.
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