sábado, 26 de outubro de 2019

Crítica para o filme O Fim da Viagem, o Começo de Tudo - Kiyoshi Kurosawa (2019)




Há pouco mais de dois anos fiz uma viagem para o Japão. Guido, um grande amigo meu, estava morando lá a aproximadamente um ano, estudando engenharia da computação em uma universidade em Tóquio na ocasião de um intercâmbio. Assim, eu e Diego, outro amigo, aproveitamos o ensejo para visitá-lo.

Passamos quase uma semana juntos em Tóquio. Guido nos buscou no aeroporto vestindo uma bandana de temática budista, uma bermuda hindu comprada na Tailândia, um coshome (chinelo de madeira japonês) florido e uma camisa hippie, daquelas desbotadas, estampada com fusões de cores vibrantes em um psicodelismo de mau gosto, comprada na ocasião de uma viagem para Alto Paraíso que tinha feito comigo e com Sanches alguns anos antes. Ele tinha um ar muito diferente da última vez que nos encontramos - contraditoriamente ao que a sua indumentária esquizofrênica supostamente indicava, ele soava mais latino, se não forçosamente mais brasileiro, mesmo após uma extensa exposição à cultura dessemelhante na qual estava mergulhado nos últimos meses. Lembro dele ter comentado o fato do Diego ter engordado e das minhas entradas estarem mais evidentes, sinais de que a calvície tinha se acentuado no ano em que passamos longe um do outro. Eu tinha sentido muita falta do meu amigo nesse período, mesmo que tenhamos nos comunicado fortuitamente por meio de mídias virtuais. Foi maravilhoso vê-lo novamente em mídia física.

Me diverti como não o fazia em anos. Próximo dos meus amigos, provando ramen pela primeira vez e me apaixonando perdidamente pelo prato tradicional, sentindo o prazer inefável do gosto do sushi de atum local (na solitária circunstância em que nos permitimos gastar um pouco mais de dinheiro), conhecendo os costumes da cidade, tendo uma experiência de intimidade talvez excessivamente franca numa ida até uma onsen (onde ficamos todos nus durante horas passeando pelas saunas e piscinas de temperaturas diferentes), visitando atrações turísticas, e, claro, provando um pouco do misticismo que o Diego sempre traz com ele, em alguns eventos paranormais e delírios coletivos (figurando um insólito conto, absolutamente inesquecível, no qual confrontamos um fantasma nu, obcecado por entulho e bicicletas, em um caótico deslocamento sensorial que experienciamos na descida de um elevador - mas essa história fica para outra ocasião).

Fomos em seguida para Quioto, uma das cidades mais lindas do mundo. Visitamos um museu a céu aberto de esculturas, no qual lembro de ter visto um casal muito fofo passeando sob a garoa silenciosa. Mais templos, histórias hilárias, uma espiada ao monte Fuji escondido atrás de nuvens em um passeio de barco, uma ida para uma balada local no qual me recordo de ter beijado - num estado gravemente alcoolizado - uma lindíssima australiana, com quem espero não ter sido indiscreto. Nos divertimos bastante.

Mas todo sonho tem que acabar em algum momento. Diego teve que voltar para Brasília por um compromisso acadêmico e Guido para Tóquio por histórias do coração que não precisam (talvez não devam) ser mencionadas em maior detalhe. Continuei assim o resto da minha viagem sozinho.

Nos primeiros dias a solidão me incomodou bastante. Não falo japonês e, apesar de estar acostumado em viajar sozinho, sempre fico um pouco triste de vivenciar tantos momentos inesquecíveis (gastronômicos, culturais, espirituais) sem a companhia de alguém para compartilhar as sensações. Às vezes a solidão se aformoseia como lembrança também, geralmente na presença de espelhos, e a desolação vem com mais força nessas circunstâncias.

Comecei minha aventura em Yokohama, de onde segui para Osaka, Nara, Okinawa, Ise, Hiroshima, Miyajima, Nikko, além de algumas cidades e vilas menores. Algo curioso sobre o Japão é que é muito difícil encontrar alguém que fale inglês - principalmente no interior. Tive muita dificuldade para me comunicar com as pessoas que conheci nos albergues e nas atrações da cidade.

Nara é uma cidade com muitos veados. Andam na rua bonançosos, geralmente em grupos de três ou quatro, e encontramos muitos - muitos mesmo - nos parques. Tirei uma selfie com um deles que gosto muito, principalmente pela expressão curiosa que o seu protagonista fez ao olhar para a tela do meu celular (apresentando também um photobomb de um colega do meu novo amigo, passeando desavisado no fundo).

A partir de Okinawa, o pacote de dados que eu comprei para meu telefone esgotou e me encontrei sem internet. Na época lembro de ter ficado bastante preocupado, mas ao mesmo tempo o passeio, que passou a ser conduzido pelo uso de mapas em mídia física, despertou na minha audácia um prazer saudosista pelo analógico - delírio recorrente entre nós cinéfilos.

Em Ise, já em modo offline, algo curiosíssimo aconteceu. Acabei enfiado no meio de um grupo escandalosamente barulhento de chineses, que conversavam incessantemente em mandarim comigo mesmo sem eu entender nada, dentro de um ônibus com destino desconhecido. Como me encontrei no interior de um ônibus indo para um local que eu não sabia nem qual era é um desses mistérios que as relações humanas desprovidas de diálogo consciente permitem.

Chegamos numa vasta região, próxima do litoral. Os chineses rapidamente correram para a praia, e eu me perdi deles por ter ficado absolutamente hipnotizado com uma extravagância fundamentalmente pynchoniana que me deparei nesse enorme terreno baldio, de grama curta mas praticamente sem árvores: encontrava-se no seu centro um aquário enorme, onde, ao som de uma exótica canção havaiana, um preguiçoso leão marinho tomava sol, solitário. Não havia absolutamente nada nas redondezas além do meu preguiçoso amigo totalmente deslocado espacialmente. Não havia casas, prédios, o áquario não tinha uma recepção ou uma área de conveniência, absolutamente nada além de um globo de vidro e grama rasteira o circundando. Se me permito a conjectura, o meu companheiro parecia acostumado com a sua solidão. Misteriosíssimo, e após alguns minutos absorto pela imprevisibilidade da situação que me encontrava, fui rumo à praia para ver se encontrava alguma atração turística.

Acabei em um incrível templo shintoísta, cheio de esculturas de sapos e um monumento espetacular de duas rochas unidas por cordas. Passeei pela região até o fim da tarde, quando resolvi voltar para casa. A moça da recepção, com dificuldade, me deu direções em inglês para a estação de metrô mais próxima.

Caminhava até a estação, descendo a rua de uma área residencial, quando uma senhora, que conversava com a amiga no quintal de sua casa, me abordou de supetão e, sorridente, começou a me direcionar frases em japonês, enquanto fazia com os braços um gesto em sinal de X. Não entendi nada. Ela me puxou pelo braço, me levou até a casa dela, me serviu chá e me apresentou para o seu marido. Ela saiu da sala e fiquei alguns minutos com o senhor, que me mostrou retratos lindíssimos da sua família, algumas com seus dois filhos, dois rapazes com ar gentil, que imagino já serem adultos hoje. Eu respondia seu japonês com inglês e português, mostrando fotos que tinha salvas na galeria do meu celular da minha própria família. Senti falta dos meus avós, da minha irmã, dos meus pais.

Eis que a senhora me volta com uma amiga, supostamente anglófona, que balbucia para mim com certa dificuldade: "Road. Close. Other way. Come". Depois entendi que o que a senhora queria me dizer anteriormente era que caso eu continuasse andando até o fim da rua, iria me deparar com um beco sem saída e não seria capaz de chegar até o metrô. Incrivelmente atencioso da parte dela. Me despedi do casal, saí da casa com a amiga dela, que subiu na sua bicicleta e gestualmente pediu para eu subir na garupa. Deu duas pedaladas, desceu e disse: "Heavy. You, drive". Então fui pedalando até a estação com a senhora na garupa me dando instruções gestuais. Em pouco mais de cinco minutos chegamos na estação e nos despedimos. Lembro de ter chorado de felicidade com o dia na volta para o albergue.

Quando cheguei em Hiroshima, fui direto para o albergue deixar minha mala e, devido a uma confusão de linguagem - comentei que a cidade era linda e a menina achou que eu estava dizendo que ela era linda - a recepcionista respondeu dizendo que também me achava bonito. Aproveitei a rara oportunidade para chamá-la para sair mais tarde naquele dia. Ela não apareceu, e lembro de ter bebido algumas cervejas na companhia de um gentilíssimo barman escocês (duas delas foram cortesia do meu colega). Mesmo ela não comparecendo no encontro e mesmo que tenha respondido apenas por gentileza meu elogio acidental, tinha anos que ninguém dizia me achar bonito, e foi algo que na ocasião me deixou muito contente.

Nesse mesmo dia conheci uma jovem sueca que não tenho certeza de lembrar o nome (acredito que Julia, mas provavelmente é a minha memória me enganando), em uma casualidade na qual nos encontramos no mesmo horário no mesmo local, na região da queda da bomba, próximos de uma bela escultura que homenageava a paz, onde ela me pediu para tirar uma foto dela. Após um breve diálogo, decidimos ir juntos para o Museu Memorial da Paz.

O clima em Hiroshima nessa região é pesado. Em um rompante no qual perdi um pouco da minha controlada compostura psicológica, comecei a chorar descontroladamente e me assim me despedi de Julia, por começar a me lembrar de coisas que me machucam muito no meio de todo esse sofrimento conjuntural que me mergulhei. A dor dos outros me faz lembrar da minha própria. Tenho vergonha desse episódio e peço desculpas pelo relato, mas acho relevante mencioná-lo.

Depois desse dia atribulado em Hiroshima, peguei um barco até Miyajima. Como em Nara, essa simpaticíssima ilha apresenta vários veados nativos que passeiam livremente pelos parques repletos de turistas. Comecei a desbravar o território com o auxílio de um mapa. Em uma situação hilária, absolutamente inacreditável, tive meu mapa comido por um dos veados no meio da floresta que estava explorando, me perdi e acabei na região residencial da ilha, onde um exótico senhor me direcionou de volta para a região turística, que voltei após algumas horas de desvio do plano original.

Depois de um dia chuvoso cheio de momentos inesquecíveis em Nikko (incluindo o trágico empate que culminou na eliminação do Palmeiras para o Cruzeiro na Copa do Brasil de 2017), chegou a hora de voltar para Tóquio para pegar o avião de volta para Brasília. Peguei um ônibus noturno, e, quando cheguei na cidade, Guido foi ao meu encontro uma última vez, para me dar mais um abraço e para nos despedirmos mais uma vez. Comemos um curry juntos e tomamos cada um o nosso rumo. Já sentia saudade dele, é uma pessoa muito importante para mim. Foi bom finalmente voltar a conversar livremente com alguém, mas curiosamente senti no meu âmago uma nostalgia dos momentos que tive com as pessoas que interagi mais cedo na viagem. Foi tudo tão engrandecedor e reconfortante. Eu amo tanto o mundo, eu amo tanto as pessoas que vivem nele.

Desde essa viagem, eu deixei como foto de perfil do meu Whatsapp a que tirei em Nara com o veado. Mais cedo esse ano, mandei uma mensagem para uma amiga minha muito importante para mim. Ela disse que achou linda minha foto. Eu pretendo nunca mudá-la. Sempre que a vejo, tenho a sensação de a observar pelos olhos de outras pessoas, vejo o mundo, e lembro que Deus mantém juntos aqueles que se amam. Às vezes com um oceano de distância entre nós, mas debaixo do mesmo céu, sempre.


domingo, 20 de outubro de 2019

O antigo e o moderno - Philippe Demonsablon



Quem nunca reparou, nos filmes anteriores de Mankiewicz, um arranjo vibrante arquitetado para esconder o seu rigor, um gosto agressivo pelo brilhante, de uma simplicidade provocante? Quem, através de um desconforto construído frente a uma traiçoeira desenvoltura,  não percebeu uma abordagem deliberadamente utilizada tendo em vista esse efeito? Essa abordagem se manifesta dentro de uma ferocidade que na maioria dos seus filmes Mankiewicz desenvolvia como resposta a alguns indíviduos impotentes, incapazes de se justificarem, aflitos, sem recursos, de um rídiculo que desafia o riso.

O desprezo pode ser a expressão de um talento reprimido, 'French Cancan' sendo o mais recente exemplo de tal fenômeno. Todo o desprezo direcionado ao 'The Barefoot Condessa' desapareceu, sendo este um filme realizado com uma liberdade que poucos diretores foram capazes de modular, e isso é admirável.

***

O romance está morto desde que matamos Flaubert e Zola. Quanto tempo ainda será necessário para que os romancistas tomem conta disto? Estamos cansados de narrações, não queremos mais histórias mesmo que estas sirvam como veículo para temas dramáticos, ainda mais nas ocasiões em que o autor tenta realizar tais associações como um pretexto para enfatizar certos gestos. Gostamos de acompanhar esses temas, essas associações, esses gestos, mas não somos capazes de esquecer o veículo, a ocasião, o pretexto. E é em outro estádio, que portanto poucos diretores fazem parte, que certas obras nos permitem apreciar suas extensões prodigiosas, uma espécie de criação, de compenetração total onde tudo é novo e inimitável; não somente na matéria de expressão, mas relacionado à matéria que foi propriamente inventada. Essas obras nos dariam vontade de queimar todas as outras se ao menos elas nos permitissem de lembrar destas. O terrorismo crítico assusta? Existem certas obras singulares onde os primeiros contatos (e quem pode resistir a esgotá-los?) retiram por muito tempo toda a cor de outras obras que também são estimáveis: é só que as razões que fundaram essa estima não nos levam a uma maior convicção como agora. Assim foram para mim 'On Dangerous Ground', 'Le Carrosse d'Or', 'Él', 'Viaggio In Italia', e também não será diferente com 'The Barefoot Condessa'. Não iremos jamais, acima de tudo, nos recuperar: o estupor onde ela nos permite mergulhar não é somente a prova incontestável de sua beleza, mas também onde repousa o seu segredo.

Qual segredo?

"Caro idiota, eu te entrego as chaves da cidade. Na gaveta esquerda você encontrará as da gaveta direita e vice-versa."

Cocteau exprime assim o segredo essencial da sua criação, que é não ser capaz de nada exprimir. Como em 'Le Carrosse d'Or', 'The Barefoot Condessa' abre muitas portas, mas tentamos procurar aquela que nos conduz para mais longe - refletindo muitas facetas cintilantes, tentando procurar aquela que projeta a luz mais penetrante. Contamos as facetas, enumeramos as portas e tentamos achar as chaves,  mas mesmo que removamos uma a uma as caixas desse jogo, sempre nos depararíamos com uma ainda maior, e assim eu não creio que nós conseguiríamos nos dar conta da beleza singular dessa obra. Ela não se define somente pela soma dos seus elementos.

Existe uma participação destes, porém. Aqui estão alguns: uma pintura do meio cinematográfico (e 'The Producer', romance de Richard Brooks, confirma a sua autenticidade), quadro de príncipes endinheirados na Rivieira, retrato de uma nobreza italiana envolta de pedaços de carne em um mal-estar sem cura (1); e eu nada direi da riqueza de observação desses personagens, nem vou comentar mais sobre sua psicologia muito complexa. São elementos de um vitral, eles retiram seu valor a partir do seu contorno, a partir daquilo que as cerca, do qual a irregularidade desconserta pois ela nega o desenho. Estamos bem longe aqui da natureza simples de 'All About Eve', de sua construção impecável, censurarmos Mankiewicz de ter desdenhado essa construção aqui me lembra esses viajantes que viram as costas ao seu próprio movimento e não percebem jamais a estrada que percorreram. A bola de cristal se tornou um bloco eludido, nenhum nome tinha sido previsto para a sua forma: aí está aquilo que te fez considerar o bloco no lugar de pensar em seu nome, não se esqueça de recortá-lo de acordo com a sua conveniência.

***

Dentro dessa obra onde tudo se tem sem que se tome conta, podemos falar de simbolismo? É dizer muito pouco porque este não é suscitado tendo em vista materializar seus valores abstratos (2). Ele resulta de uma harmonia pré-existente, a obra é um novo símbolo - obra stendhaliana onde suas extravagâncias, os excessos de seus atos, se ordenam com uma importância inegável sem deixarem de ser naturais. Este analista que poderia ser visto como alguém que tem mais inteligência que coração responde aqui à esperança fundada em 'People Will Talk' e alguns momentos privilegiados de 'A Letter to Three Wives'. Ironia e compaixão, testemunhas de uma mesma inquietude a seu próprio respeito, eram então os dois movimentos de aproximação das personagens: manter em observação qualquer distância entre elas e nós para nos precipitar repentinamente sobre elas, despidos. Essa é a única abordagem concebível desses personagens que, ainda em sociedade, sentem sua representação e se vêem assim recusando a explicação ou a conscientização lhes dada por Hitchcock ou Nicholas Ray? Não, porque aqui elas se exprimem enfim por uma paixão soberana, uma pureza dentro do paroxismo, um desafio, a intransigência da sua baixeza.

***

Proust dizia que a arte não é suscetível ao progresso, cada obra permanece fechada em si mesma, nada pode lhe ser emprestado sem murchar rapidamente. Mas com isso a invenção se torna necessária a cada vez que a atividade criativa é questionada. Não me perguntem qual via 'La Comtesse aux Pieds Nus' abre: é a sua via que está sempre aberta para a invenção.

(1) "Nós estamos todos naufragados", diz uma princesa napolitana em 'Viaggio in Italia'.

(2) Me lembro do expressionismo na iluminação em 'No Way Out' e, ainda mais surpreendentes, dos planos expressionistas de 'All About Eve', que concluíam as cenas de comédia de forma fugaz com um rosto, assim as contradizendo.