domingo, 20 de outubro de 2019

O antigo e o moderno - Philippe Demonsablon



Quem nunca reparou, nos filmes anteriores de Mankiewicz, um arranjo vibrante arquitetado para esconder o seu rigor, um gosto agressivo pelo brilhante, de uma simplicidade provocante? Quem, através de um desconforto construído frente a uma traiçoeira desenvoltura,  não percebeu uma abordagem deliberadamente utilizada tendo em vista esse efeito? Essa abordagem se manifesta dentro de uma ferocidade que na maioria dos seus filmes Mankiewicz desenvolvia como resposta a alguns indíviduos impotentes, incapazes de se justificarem, aflitos, sem recursos, de um rídiculo que desafia o riso.

O desprezo pode ser a expressão de um talento reprimido, 'French Cancan' sendo o mais recente exemplo de tal fenômeno. Todo o desprezo direcionado ao 'The Barefoot Condessa' desapareceu, sendo este um filme realizado com uma liberdade que poucos diretores foram capazes de modular, e isso é admirável.

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O romance está morto desde que matamos Flaubert e Zola. Quanto tempo ainda será necessário para que os romancistas tomem conta disto? Estamos cansados de narrações, não queremos mais histórias mesmo que estas sirvam como veículo para temas dramáticos, ainda mais nas ocasiões em que o autor tenta realizar tais associações como um pretexto para enfatizar certos gestos. Gostamos de acompanhar esses temas, essas associações, esses gestos, mas não somos capazes de esquecer o veículo, a ocasião, o pretexto. E é em outro estádio, que portanto poucos diretores fazem parte, que certas obras nos permitem apreciar suas extensões prodigiosas, uma espécie de criação, de compenetração total onde tudo é novo e inimitável; não somente na matéria de expressão, mas relacionado à matéria que foi propriamente inventada. Essas obras nos dariam vontade de queimar todas as outras se ao menos elas nos permitissem de lembrar destas. O terrorismo crítico assusta? Existem certas obras singulares onde os primeiros contatos (e quem pode resistir a esgotá-los?) retiram por muito tempo toda a cor de outras obras que também são estimáveis: é só que as razões que fundaram essa estima não nos levam a uma maior convicção como agora. Assim foram para mim 'On Dangerous Ground', 'Le Carrosse d'Or', 'Él', 'Viaggio In Italia', e também não será diferente com 'The Barefoot Condessa'. Não iremos jamais, acima de tudo, nos recuperar: o estupor onde ela nos permite mergulhar não é somente a prova incontestável de sua beleza, mas também onde repousa o seu segredo.

Qual segredo?

"Caro idiota, eu te entrego as chaves da cidade. Na gaveta esquerda você encontrará as da gaveta direita e vice-versa."

Cocteau exprime assim o segredo essencial da sua criação, que é não ser capaz de nada exprimir. Como em 'Le Carrosse d'Or', 'The Barefoot Condessa' abre muitas portas, mas tentamos procurar aquela que nos conduz para mais longe - refletindo muitas facetas cintilantes, tentando procurar aquela que projeta a luz mais penetrante. Contamos as facetas, enumeramos as portas e tentamos achar as chaves,  mas mesmo que removamos uma a uma as caixas desse jogo, sempre nos depararíamos com uma ainda maior, e assim eu não creio que nós conseguiríamos nos dar conta da beleza singular dessa obra. Ela não se define somente pela soma dos seus elementos.

Existe uma participação destes, porém. Aqui estão alguns: uma pintura do meio cinematográfico (e 'The Producer', romance de Richard Brooks, confirma a sua autenticidade), quadro de príncipes endinheirados na Rivieira, retrato de uma nobreza italiana envolta de pedaços de carne em um mal-estar sem cura (1); e eu nada direi da riqueza de observação desses personagens, nem vou comentar mais sobre sua psicologia muito complexa. São elementos de um vitral, eles retiram seu valor a partir do seu contorno, a partir daquilo que as cerca, do qual a irregularidade desconserta pois ela nega o desenho. Estamos bem longe aqui da natureza simples de 'All About Eve', de sua construção impecável, censurarmos Mankiewicz de ter desdenhado essa construção aqui me lembra esses viajantes que viram as costas ao seu próprio movimento e não percebem jamais a estrada que percorreram. A bola de cristal se tornou um bloco eludido, nenhum nome tinha sido previsto para a sua forma: aí está aquilo que te fez considerar o bloco no lugar de pensar em seu nome, não se esqueça de recortá-lo de acordo com a sua conveniência.

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Dentro dessa obra onde tudo se tem sem que se tome conta, podemos falar de simbolismo? É dizer muito pouco porque este não é suscitado tendo em vista materializar seus valores abstratos (2). Ele resulta de uma harmonia pré-existente, a obra é um novo símbolo - obra stendhaliana onde suas extravagâncias, os excessos de seus atos, se ordenam com uma importância inegável sem deixarem de ser naturais. Este analista que poderia ser visto como alguém que tem mais inteligência que coração responde aqui à esperança fundada em 'People Will Talk' e alguns momentos privilegiados de 'A Letter to Three Wives'. Ironia e compaixão, testemunhas de uma mesma inquietude a seu próprio respeito, eram então os dois movimentos de aproximação das personagens: manter em observação qualquer distância entre elas e nós para nos precipitar repentinamente sobre elas, despidos. Essa é a única abordagem concebível desses personagens que, ainda em sociedade, sentem sua representação e se vêem assim recusando a explicação ou a conscientização lhes dada por Hitchcock ou Nicholas Ray? Não, porque aqui elas se exprimem enfim por uma paixão soberana, uma pureza dentro do paroxismo, um desafio, a intransigência da sua baixeza.

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Proust dizia que a arte não é suscetível ao progresso, cada obra permanece fechada em si mesma, nada pode lhe ser emprestado sem murchar rapidamente. Mas com isso a invenção se torna necessária a cada vez que a atividade criativa é questionada. Não me perguntem qual via 'La Comtesse aux Pieds Nus' abre: é a sua via que está sempre aberta para a invenção.

(1) "Nós estamos todos naufragados", diz uma princesa napolitana em 'Viaggio in Italia'.

(2) Me lembro do expressionismo na iluminação em 'No Way Out' e, ainda mais surpreendentes, dos planos expressionistas de 'All About Eve', que concluíam as cenas de comédia de forma fugaz com um rosto, assim as contradizendo.

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