O filme começa. Está escuro, então não enxergo nada além do
negro da tela. Não vejo, mas logo escuto: ela pede para eu filmar o
seu rosto. Mas eu não vejo o seu rosto, e como Cézanne costumava
dizer sobre a pintura, só se pode pintar aquilo que se vê. O que
não se vê só se pode deixar de fora, e essa afirmação é
perfeitamente aplicável no cinema também. Logo em seguida ela
pede para eu filmar o céu. O céu eu vejo, basta olhar para o alto -
então eu começo a filmá-lo. Finalmente ela pede para eu filmar o
rosto dela no céu, e isso eu posso ver também. E lá ele está.
Logo em seguida,
desço o meu olhar, porque percebo um movimento que me distrai do que
me propus a filmar ali. Estamos agora no mundo da criatividade, da
fantasia, e lá vemos um rapaz vestido com roupas sujas, de aspecto
meio esdrúxulo com um chapéu de palha fora de lugar (detalhe
especial para o Viktor com uma belíssima protuberância na região
abdominal, incrível), descendo a estrada de terra em passos largos.
Entre as árvores, vejo o sol, como que escondido, mas
definitivamente presente, silenciosamente observador.
Alguém realiza uma
tarefa caseira. Banal, mas que me oferece um certo mistério - eu não
a vejo por inteiro, apenas parte do seu rosto por entre as roupas
penduradas. Ela aparenta ser jovem e aparenta ser bela, mas não me é
acessível. Em cima dela está o céu, mas eu não o vejo mais, agora
estou focado em tentar descobrir mais sobre essa garota de voz
contida e pouca expressividade.
Ele pede por abrigo
e comida, ela concede, e logo estamos dentro de uma pintura que
aparenta vir de alguém como Vermeer iluminado por alguém como
Rembrandt se Vermeer não soubesse pintar e Rembrandt não soubesse
iluminar seus cenários. As frutas do Cézanne estão presentes, como
não podia ser diferente em um banquete sonhado.
Descobrimos de vez
que estamos no terreno da imaginação: Ali temos a filha do Sol,
estrela da vida e da existência, do calor e da impetuosidade, e o
filho da Lua, corpo astronômico das paixões, da dubiedade, da
representação e dos coelhos escondidos. Descobrimos o que faz o
filho da Lua ali: está atrás da sua irmã, Vitória Régia, que
fugiu de casa após se apaixonar pela mãe. Logo percebemos que
existe algo para além de um amor fraternal entre ele e a princesa do
reino lunar, apesar de ainda não termos isso explícito. Beatriz
aparenta flertar com o príncipe, mas de maneira contida. Ela indica
que uma entidade chamada Mãe d’Ouro pode ajudá-lo.
Mãe d’Ouro é um
espelho, que diz podê-lo castigar com o que ele mais deseja no
mundo. É um reflexo ligado ao mundo material ou um reflexo que
transcende a matéria? Seria possível olhar no espelho e ver outra
pessoa? Olhar uma imagem em uma tela bidimensional e encontrar o rosto
de algum outro ali?
Em seguida Boitatá
aparece e lhe fala de Iara, que tem feito muitas vítimas
ultimamente. Ela pede sua ajuda e ele resolve um problema estatístico
descobrindo onde o próximo amante de Iara se encontrará. Ao
resolvê-lo, é transportado para um ambiente onírico e toca uma
música para a dança de Beatriz, e em seguida finalmente encontra
Iara, em um estado simultaneamente depressivo e lascivo. Iara diz ser
Vitória. Seria se apaixonar encontrar os traços da mulher que você
ama em outras mulheres?
Beatriz jura
vingança contra seu pai, o espelho de Júlio é morto com um beijo,
e assim finalmente ele encontra a liberdade. Se libertar dos seus
desejos é talvez se libertar também das suas necessidades
fisiológicas. A vingança contra a matéria é a aniquilação da dependência do idealismo para com o materialismo: a partir do momento em que tudo o que existe é ideia, toda a dor desaparece. Não há senso de probabilidade nem de realidade, existe apenas o tudo, fora do tempo e espaço, fora da consciência, um sonho absoluto onde tudo simplesmente é e não é, sem subordinação a nada - tudo já está ali.
Depois do teatro amador que testemunhamos, vemos que aquilo
era só um trabalho de garagem de alguns amigos, e em seguida o
diretor vai conversar com sua atriz. Após algumas piadas sem graça,
eles discutem o princípio holográfico e as dez dimensões.
Se o mundo é ele próprio uma representação – um plano bidimensional
cujas informações ali podem construir um mundo tridimensional
quando extrudadas - seria possível dizer que existe propriamente algo
de material?
O sol queima, a
existência é dor física. Cada tapa dado, cada rastejo na terra,
cada toque, todo o frio do dia da filmagem, tudo isso foi 100% verdade.
Inventar verdades é coisa séria. Cada palavra proferida é significativa, cada 'som foi', cada ação. O que significa ter fé na representação? Encontrar na filmagem um resquício de realidade que possa dar ao imaginário a potência do real. O problema das ideias é que elas não tem substância. São formadas pelo princípio da frustração. Existiria algum estado de espírito que permita algo para além da memória? Seria possível, com a força da representação, encontrar no mais amador, mais inconsistente, mais desleixado exercício, um resquício das coisas que você amou? Vivê-las para além da sua descrição. O problema da representação é esse: é difícil imaginar as coisas que não estão lá. Cinema é uma busca. Tentar encontrar alguma singularidade na qual o tempo e o espaço possam colapsar, mesmo que por um instante, onde a subordinação do espírito para a memória e a factualidade possa dar lugar a um absoluto fora de si mesmo.
Beatriz Viterbo ou
Estela Canto? Sempre que leio ou escuto ou danço ou sinto Beatriz,
eu vejo Estela. Às vezes eu sinto cheiro de um perfume, não é o
aroma daquela flor do deserto, mas me lembra, relembro, ressinto,
re-sinto, revejo. Eu gosto de sonhar porque quando eu sonho eu não
sou eu mesmo, sou um reflexo e vejo meu reflexo beijar o seu espelho.
Somos e eu digo Sim. E o sonho continua, e continua, e continua, e
continua, e continua, e cont