sábado, 29 de fevereiro de 2020

A Sarça Ardente



O filme começa. Está escuro, então não enxergo nada além do negro da tela. Não vejo, mas logo escuto: ela pede para eu filmar o seu rosto. Mas eu não vejo o seu rosto, e como Cézanne costumava dizer sobre a pintura, só se pode pintar aquilo que se vê. O que não se vê só se pode deixar de fora, e essa afirmação é perfeitamente aplicável no cinema também. Logo em seguida ela pede para eu filmar o céu. O céu eu vejo, basta olhar para o alto - então eu começo a filmá-lo. Finalmente ela pede para eu filmar o rosto dela no céu, e isso eu posso ver também. E lá ele está.

Logo em seguida, desço o meu olhar, porque percebo um movimento que me distrai do que me propus a filmar ali. Estamos agora no mundo da criatividade, da fantasia, e lá vemos um rapaz vestido com roupas sujas, de aspecto meio esdrúxulo com um chapéu de palha fora de lugar (detalhe especial para o Viktor com uma belíssima protuberância na região abdominal, incrível), descendo a estrada de terra em passos largos. Entre as árvores, vejo o sol, como que escondido, mas definitivamente presente, silenciosamente observador.

Alguém realiza uma tarefa caseira. Banal, mas que me oferece um certo mistério - eu não a vejo por inteiro, apenas parte do seu rosto por entre as roupas penduradas. Ela aparenta ser jovem e aparenta ser bela, mas não me é acessível. Em cima dela está o céu, mas eu não o vejo mais, agora estou focado em tentar descobrir mais sobre essa garota de voz contida e pouca expressividade.

Ele pede por abrigo e comida, ela concede, e logo estamos dentro de uma pintura que aparenta vir de alguém como Vermeer iluminado por alguém como Rembrandt se Vermeer não soubesse pintar e Rembrandt não soubesse iluminar seus cenários. As frutas do Cézanne estão presentes, como não podia ser diferente em um banquete sonhado.

Descobrimos de vez que estamos no terreno da imaginação: Ali temos a filha do Sol, estrela da vida e da existência, do calor e da impetuosidade, e o filho da Lua, corpo astronômico das paixões, da dubiedade, da representação e dos coelhos escondidos. Descobrimos o que faz o filho da Lua ali: está atrás da sua irmã, Vitória Régia, que fugiu de casa após se apaixonar pela mãe. Logo percebemos que existe algo para além de um amor fraternal entre ele e a princesa do reino lunar, apesar de ainda não termos isso explícito. Beatriz aparenta flertar com o príncipe, mas de maneira contida. Ela indica que uma entidade chamada Mãe d’Ouro pode ajudá-lo.

Mãe d’Ouro é um espelho, que diz podê-lo castigar com o que ele mais deseja no mundo. É um reflexo ligado ao mundo material ou um reflexo que transcende a matéria? Seria possível olhar no espelho e ver outra pessoa? Olhar uma imagem em uma tela bidimensional e encontrar o rosto de algum outro ali?

Em seguida Boitatá aparece e lhe fala de Iara, que tem feito muitas vítimas ultimamente. Ela pede sua ajuda e ele resolve um problema estatístico descobrindo onde o próximo amante de Iara se encontrará. Ao resolvê-lo, é transportado para um ambiente onírico e toca uma música para a dança de Beatriz, e em seguida finalmente encontra Iara, em um estado simultaneamente depressivo e lascivo. Iara diz ser Vitória. Seria se apaixonar encontrar os traços da mulher que você ama em outras mulheres?

Beatriz jura vingança contra seu pai, o espelho de Júlio é morto com um beijo, e assim finalmente ele encontra a liberdade. Se libertar dos seus desejos é talvez se libertar também das suas necessidades fisiológicas. A vingança contra a matéria é a aniquilação da dependência do idealismo para com o materialismo: a partir do momento em que tudo o que existe é ideia, toda a dor desaparece. Não há senso de probabilidade nem de realidade, existe apenas o tudo, fora do tempo e espaço, fora da consciência, um sonho absoluto onde tudo simplesmente é e não é, sem subordinação a nada - tudo já está ali.

Depois do teatro amador que testemunhamos, vemos que aquilo era só um trabalho de garagem de alguns amigos, e em seguida o diretor vai conversar com sua atriz. Após algumas piadas sem graça, eles discutem o princípio holográfico e as dez dimensões. Se o mundo é ele próprio uma representação – um plano bidimensional cujas informações ali podem construir um mundo tridimensional quando extrudadas - seria possível dizer que existe propriamente algo de material?

O sol queima, a existência é dor física. Cada tapa dado, cada rastejo na terra, cada toque, todo o frio do dia da filmagem, tudo isso foi 100% verdade. Inventar verdades é coisa séria. Cada palavra proferida é significativa, cada 'som foi', cada ação. O que significa ter fé na representação? Encontrar na filmagem um resquício de realidade que possa dar ao imaginário a potência do real. O problema das ideias é que elas não tem substância. São formadas pelo princípio da frustração. Existiria algum estado de espírito que permita algo para além da memória? Seria possível, com a força da representação, encontrar no mais amador, mais inconsistente, mais desleixado exercício, um resquício das coisas que você amou? Vivê-las para além da sua descrição. O problema da representação é esse: é difícil imaginar as coisas que não estão lá. Cinema é uma busca. Tentar encontrar alguma singularidade na qual o tempo e o espaço possam colapsar, mesmo que por um instante, onde a subordinação do espírito para a memória e a factualidade possa dar lugar a um absoluto fora de si mesmo.

Beatriz Viterbo ou Estela Canto? Sempre que leio ou escuto ou danço ou sinto Beatriz, eu vejo Estela. Às vezes eu sinto cheiro de um perfume, não é o aroma daquela flor do deserto, mas me lembra, relembro, ressinto, re-sinto, revejo. Eu gosto de sonhar porque quando eu sonho eu não sou eu mesmo, sou um reflexo e vejo meu reflexo beijar o seu espelho. Somos e eu digo Sim. E o sonho continua, e continua, e continua, e continua, e continua, e cont

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