sábado, 1 de fevereiro de 2014

35 Doses De Rum - Claire Denis (2008)


Em 35 Doses De Rum, Claire Denis estabelece um paralelo crítico sociopolítico entre as relações familiares de um núcleo social, contidas na diegese fílmica de 35 Doses De Rum, com a sociedade francesa moderna, brevemente apresentada no filme, porém muito bem explorada no extra-campo da obra (a França é filmada na periferia, com músicas africanas, panelas de arroz japonesas, bares jamaicanos - muito distante do cosmopolitismo normalmente associado ao país). Retratando magistralmente pequenos conflitos familiares e expandindo seus conceitos, a diretora foi capaz de criar uma obra de fortíssimo valor estético e crítico - 35 Doses De Rum é uma das obras mais sensíveis do cinema contemporâneo.

O filme inicia-se com belíssimas imagens de um trem em movimento, expandindo posteriormente o valor dos trilhos do trem para proporções metafísicas (estabelecendo forte relação com o filme Pai e Filho, filme de 1949 do genial Yasujiro Ozu). Mas, enquanto no filme de Ozu esse trem é filmado a partir de plataformas, no filme de Denis estamos dentro do trem, olhando para os trilhos. Uma diferença estética relativamente sutil, porém que adquire valores reflexivos distintos na diegese dos filmes: enquanto em Ozu as análises humanas tendem a ser mais objetivas, aqui elas adquirem subjetividade. As personagens de 35 Doses De Rum transitam à margem dos trilhos, em conflitos silenciosos que falaciosamente tendem a ser creditados como inofensivos, porém que caracterizam uma crise sutil naquele núcleo de amizades. E essas crises sociais apresentadas microscopicamente são por sua vez relacionadas com crises sociais macroscópicas - adquirindo reflexão acerca de valores de hierarquia até entre países.

Mas a diretora não se contenta em estabelecer essa fantástica comparação: ela vai mais a fundo, e questiona - não necessariamente impõe - até que ponto a hierarquia sistemática mundial é dispensável (ela não nega a demagoga imoralidade no sistema, nem exalta a inércia, ela apenas defende que reações extremistas não são uma solução). Uma das personagens mais importantes do filme, um amigo do protagonista que também é condutor (condição apresentada não ao acaso) encontra-se desiludido por estar aposentado e não saber o que faz da vida após o fim do seu trabalho nas plataformas de trem. Não revelando detalhes sobre a obra, deixemos assim: o filme discute a dependência do sistema na vida das pessoas. É comum as pessoas condenarem a maneira como a hierarquia se dá, seja ela política ou social, porém raramente elas se dão ao trabalho de analisarem como ou por quê essas relações se estabelecem. Assim como em O Demônio Das Onze Horas, 35 Doses de Rum discute os limites da liberdade, demonstra o quão ilusório é o livre arbítrio e como essas relações - sejam elas amorosas, familiares, laboriais - possuem uma interdependêcia inegável.

Veja a personagem Joséphine: ela pode a qualquer momento abandonar seu pai e viver sua vida, mas ela não o faz: não por quê não quer, e sim por quê não pode. Ou por quê pode mas não quer? Olhe seu namorado: ele é livre para ir embora, até ensaia vender o apartamento, mas no fim do filme o vemos preso no mesmo sistema, seja por vontade própria ou necessidade social.

Agora o filme não se demonstra totalmente inerte em relação às críticas apresentadas: chega em um ponto do filme em que a família tem que confrontar o passado. A contingência da morte no sentido mais analítico não é o problema - o gato vai para o lixo depois de morto - mas sim a ausência que gera consequências devastadoras. O vácuo entre o corpo e a câmera de Denis remete ao vazio existencial das personagens - os problemas acabam sendo expostos quando a crise se alastra. E no fim as 35 doses de rum são tomadas, celebrando o que permanece tangível: a vida.

As personagens estão em constante conflito, porém raramente este é expresso verbalmente, adquirindo grande subjetividade. A relação entre o pai e filha é sufocante, mas é inegável o amor incondicional de ambos. Esse paradoxo estabelece relações inclusive com a vida - a dicotomia metafórica associada aos trilhos do trem está aí.

Agora o que realmente torna o filme uma obra prima de valor inestimável para o cinema contemporâneo é a sensibilidade da diretora em filmar a história. É notável como ela é capaz de expor o que há de mais condenável na psicologia humana e ao mesmo tempo exaltar a humanidade como um todo, mantendo sempre uma beleza incompreensível permeando todo o sofrimento existencial nas suas tramas. Basta pegar qualquer cena de olhares entre as personagens para saber que se trata de uma obra maior do cinema.

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