segunda-feira, 17 de março de 2014
A Tortura Do Medo - Michael Powell (1960)
A Tortura Do Medo, filme lançado em 1960 junto com Psicose, quebra juntamente com o seu contemporâneo algumas barreiras relacionadas à representação da morte no cinema - inovação esta que justifica o fracasso comercial da obra na época do lançamento. O filme conta a história de Mark, um jovem perturbado que foi traumatizado na infância pelo pai. Devido a uma série de experimentos realizados por ele, Mark tornou-se um psicopata fascinado pela ideia da expressão mais genuína do medo, e inicia uma sequência de assassinatos brutais em que ele filma as expressões de suas vítimas quando elas estão prestes à morrer.
De um ponto de vista analítico, a crise freudiana do protagonista Mark pode aparentar um pouco confusa, porém em conjunto com a instigante diegese do filme - que apresenta uma interessante dicotomia entre sensibilidade e brutalidade, encontrando uma certa poesia na morbidez intrínseca aos atos de Mark - ela adquire potência e no fim o espectador já se encontra em uma posição privilegiada, em que a personalidade de Mark soa justificável, apesar de logicamente ser repudiável.
A Tortura Do Medo explora de maneira perspicaz a relação entre o espectador e a película, condicionada com a ideia de voyeurismo, bastante explorada em várias outras obras de imensurável qualidade na história do cinema (Janela Indiscreta, Alguém Me Vigia, Caché, ...). Aqui, a condição de voyeur do espectador atinge um patamar elevadíssimo graças ao elegante uso de luzes de Powell, juntamente com uma primorosa técnica de câmera subjetiva.
O filme faz parte de um seleto grupo de filmes que aparenta ter sido feito quase que exclusivamente para amantes incondicionais do cinema, como Adeus Dragon Inn, Blow Up - Depois Daquele Beijo e Conto de Cinema. É curioso o fato do apelo do filme atingir majoritariamente alguém que apresente interesse pelo cinema na sua definição mais primitiva: a ideia de voyeurismo, a representação imagética de acontecimentos e as diferentes percepções proporcionadas pelo contexto em que eles estão inseridos. Além disso, a curiosidade mórbida do protagonista, por mais sádica que possa aparentar, é algo inerente à qualquer ser humano: o medo da morte, a curiosidade pelo desconhecido.
quarta-feira, 12 de março de 2014
Sangue Ruim - Leos Carax (1986)
Sangue Ruim é um misto de ficção científica e film-noir, com fortes influências da nouvelle vague na sua composição estética - característica esta que proporciona à obra caráter sublime, sendo esse deslumbre visual uma das maiores qualidades que o filme possui. A fotografia é belíssima, as referências são inúmeras, a trilha sonora é perfeitamente ajustada às cenas, o roteiro é poético e encantador: em suma, um filme típico de Leos Carax.
A narrativa toma lugar em uma França pós moderna, onde uma doença nova denominada STBO tem como transmissão o sexo sem amor, sem compromisso (clara alusão à epidemia do vírus do HIV, que a partir da década de 80 começou a se alastrar pelo mundo atenuando a liberdade sexual conquistada na década de 60/70 pela juventude mundial). Carax parte dessa premissa para expor uma dissertação que a priori pode aparentar desinteressante e datada, mas com uma diegese fílmica instigante e bela acaba atingindo potência imensurável.
A mise-en-scène evoca uma França fria e individualista, expondo um encarceramento social e sentimental que parece desolar a sociedade. Esse ambiente claustrofóbico associa-se perfeitamente ao solilóquio intrínseco às personagens da obra, que apesar de possuirem relações interpessoais aparentam estar sempre em desilusão existencial, demonstrando uma certa confusão sentimental renitente.
Impossível não se interessar também pelas fantásticas personagens de Julie Delpy e Juliette Binoche, que representam peculiaridades psicológicas e interpretações passionais que estabelecem um inexplicável paradoxo com as ideias do filme: contrapõe-se e se associam ao mesmo tempo à estética desesperançosa da obra.
quarta-feira, 5 de março de 2014
Água Fria - Olivier Assayas (1994)
Olivier Assayas é um daqueles diretores que têm como intuito principal expor em seus filmes falácias morais e/ou sociais ignoradas pela sociedade em geral, usualmente por não apresentarem consequências negativas imediatas ou evidentes. Em Água Fria, ele disserta sobre a rebeldia (sem?) causa presente na juventude francesa pós 68 e sem demagogias pretensiosas propõe um exercício exasperante, com movimentos fluidos de câmera que evocam a frustração desses jovens e a incompatibilidade ideológica deles com a sociedade.
O filme conta a história de um casal de namorados, Gilles e Christine (essa última em excelente atuação), que possuem graves problemas familiares e cometem pequenos delitos como atos de rebeldia contra a opressão silenciosa presente no sistema social do país na época. Todas essas relações são filmadas com a exímia sensibilidade estética de Assayas, que vai mostrando as mudanças no interior de suas personagens com cautela, expondo a asfixia psicológica que a sociedade imprime no casal.
Uma característica peculiar na obra é a presença constante de elementos estrangeiros na composição estética do filme - trilha sonora estrangeira, forte influência norte americana no cotidiano da sociedade setentista francesa - que remetem à uma perda de identidade, sendo este um dos fatores para a desilusão existencial das personagens, incapacitando-as de se relacionar com o mundo exatamente por não se sentirem parte do mesmo.
No fim, resta a solidão - que sempre esteve lá, apenas escondida no meio de tantos conflitos, abafada com a voracidade silente presente na relações interpessoais do filme. A última cena é belíssima, sintetiza toda essa incompreensão ontológica presente na juventude, esse grito silencioso de desespero que decorre do ser. Essencial!
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