quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A Hélice e a Idéia - Éric Rohmer (1959)

"Ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, único, homogêneo, eterno."
Platão


Perdoaríamos prontamente Alfred Hitchcock se ele tivesse sucedido o seu austero filme 'The Wrong Man' com uma obra mais divertida, ou pelo menos mais acessível às multidões. Talvez tenha sido essa a sua intenção quando ele decidiu trazer às telas o romance de Boileau e Narcejac 'D'entre les Morts'. Contudo, o esoterismo de 'Vertigo' foi rejeitado na América, e agora a crítica francesa parece lhe proporcionar uma recepção calorosa - aí está Hitchcock posto pelos nossos colegas no mesmo lugar onde sempre o instalamos. E aqui estamos, ao mesmo tempo, privados da agradável tarefa de prover sua defesa.

É inútil procurar em outro lugar um indicador para a sua genialidade. Hitch é ilustre o suficiente para não merecer outra comparação que não seja consigo mesmo. Se anexei em primeiro plano desse texto uma frase de Platão, que pode ser vista igualmente na cabeça do conto 'Morella' de Edgar Allan Poe, é porque o argumento, de certa forma, se assemelha àquele de 'Vertigo'. Não é que eu queira igualar o nosso cineasta ao autor de 'Parmênides' nem ao autor de 'Extraordinary Stories', mas apenas propor uma chave capaz de abrir o maior número de portas possíveis, e não há nada a se fazer além de usá-la, mesmo que ela soe tão pretensiosa. Não se trata de fazer de Hitchcock um metafísico. Da metafísica, o presente comentarista é o único responsável, e mesmo que a considere conveniente, acho-a inútil.

'Vertigo' me parece a terceira parte de um tríptico do qual as duas primeiras são os filmes 'Rear Window' e 'The Man Who Knew Too Much'. Esses três filmes são filmes de arquitetura. Primeiramente pela abundância que encontramos, nos três, de padrões arquitêtonicos, no sentido próprio do termo. Aqui, os primeiros trinta minutos são uma espécie de documentário sobre o cenário urbano de São Francisco. O pano de fundo é fornecido por várias mansões no estilo do século XX, nas quais as lentes da câmera têm prazer em descansar, da mesma maneira como já haviam descansado em 'To Catch a Thief', nas locações da Côte d'Azur. A imediata razão para as suas existências, pragmática, é que elas criam uma impressão de desorientação no tempo. Elas simbolizam esse passado para o qual o olhar do detetive se torna, simultaneamente como se torna também para a suposta louca.


Encontramos durante o filme uma outra arquitetura mais antiga, a de um mosteiro espanhol do século XVIII, e resgataremos, desta vez muito diretamente, através de uma torre, o principal tema da história: a vertigem. E aqui estamos um passo mais próximo da analogia dos dois filmes anteriormente citados. Em cada um deles, os heróis são vítimas de uma paralisia relativa ao deslocamento em determinado meio. Em 'Rear Window' se trata da imobilidade forçada do protagonista, o meio sendo o espaço propriamente. Em 'The Man Who Knew Too Much', o médico e sua mulher, conforme indica o título do filme, conhecem muito bem o futuro, mas ao mesmo tempo muito pouco: suas paralisias são a ignorância, o campo de análise já não é mais o espaço, e sim o tempo. Nesse filme o detetive, ainda interpretado por James Stewart (e que, portando um espartilho, lança uma piscadela ao fotógrafo de 'Rear Window') é vítima ele também de uma paralisia, a vertigem. O meio dessa vez é constituído pelo tempo, mas não mais o do pressentimento, orientado para o futuro. Pelo contrário, é dirigido ao passado: é o tempo da reminiscência.

Como os outros dois filmes, 'Vertigo' é um filme de puro "suspense", ou seja, de construção. A mola da ação não será mais constituída pela marcha de paixões ou qualquer tragédia moral (como em 'Under Capricorn', 'I Confess' ou 'The Wrong Man'), mas por um processo abstrato, mecânico, artificial, externo, pelo menos na aparência. Não é o homem que é a força motriz nesses três filmes. O destino também não o é, pelo menos não no sentido dado a ele depois dos gregos. É na realidade a própria forma desses elementos formais que são o Espaço e o Tempo. Vagaremos, sem dúvidas, indefinidamente para descobrirmos se há ou não "suspense" em Hitchcock. No sentido mais geral do termo, como o gênero podendo manter o espectador sem fôlego, diremos que este sempre existiu e aqui ainda mais que em outros lugares, mesmo que a trama principal (que fecha o romance) nos seja entregue 30 minutos antes do fim. Já se sabia que não era nos mistérios de um mecanismo retórico, por mais inteligente que fossem, que as portas secretas de Hitchcock se abriam. O importante é que sempre queremos saber mais e mais na mesma medida em que nos são dadas mais verdades, sendo que a solução do enigma não deve nunca rebentar, como uma a bolha de sabão, a massa de intrigas que até o último momento fora construída para fazermos uma bola de neve (crítica que poderia ter sido feita, por exemplo, no 'To Catch a Thief'). Aqui o suspense é de dupla ação: não apenas sensibiliza o futuro, mas aprimora o passado. Porque o passado não é aqui a massa desconhecida que um autor de direito divino reserva e que, atualizado, será capaz de desfazer todos os nós. Vemos que ele apenas os está apertando ainda mais com seu ressurgimento. Na medida em que as névoas da história vão se dispersando, aparece uma nova figura que não conhecíamos tão bem quanto a anterior, mas que sempre esteve presente. Essa Madeleine, crua, verdadeira, nunca é portanto realmente conhecida, é um verdadeiro fantasma, uma vez que existia apenas na mente do detetive, não sendo mais que uma ideia.

Assim como em 'Rear Window' e 'The Man Who Knew Too Much', 'Vertigo' é uma espécia de parábola do conhecimento. No primeiro filme, o fotógrafo virou as costas para o verdadeiro sol (leia-se a vida) e viu apenas as sombras na parede da caverna (no quintal). No segundo, o médico, muito confiante na dedução policial, também fracassou em seu objetivo, enquanto a intuição feminina teve sucesso. Aqui, o detetive é fascinado desde o começo pelo passado (representado pelo retrato de Carlotta Valdès a quem a falsa Madeleine pretende se identificar), e será continuamente propelido de uma aparição até a outra: apaixonado não por uma mulher, mas pela ideia de uma mulher. Mas, ao mesmo tempo, assim como nas outras duas partes da trilogia, além dessa significação intelectual (refiro-me a esse comentário relativo ao conhecimento) podemos distinguir uma outra, moral. Stewart é aqui novamente não apenas infeliz e enganado mas também culpado - digamos "falsamente culpado" para empregar a terminologia hitchcockiana, podendo assim também acusá-lo de falsamente inocente. Ele é acusado por um tribunal de ser responsável por sua falta de jeito com a morte da mulher. Mas se ele não foi nem um pouco culpado pela morte de Madeleine, será de fato dessa vez, devido à sua perspicácia e destreza recuperadas, responsável pela morte de Judy, esta falsamente acusada por ele de cumplicidade.

Empregando o termo "parábola", não quero taxar 'Vertigo' de sequidão ou irrealismo. Não é uma história. No máximo, como em todos os filmes do Hitchcock, podemos discernir esses pequenos desvios da verossimilhança - digamos que desprezo por certas "justificativas" - que no passado haviam causado tanta inquietude. Se 'Vertigo' é banhado por uma atmosfera encantadora, a névoa e a auréola estão no espírito do herói, não do autor, e isso não compromete de forma alguma o tom realista do filme. Admiremos, ao contrário, a arte com a qual o cineasta cria essa reprodução do fantástico pelos meios mais indiretos e mais discretos, especialmente o quanto ele o repele, em uma abordagem temática próxima àquela de 'Les Diaboliques' do Clouzot, para imprimir os menores instantes sobre nossos nervos. A impressão de estranheza é produzida não pela hipérbole, mas pela atenuação, por isso é que a primeira parte é filmada quase integralmente em planos gerais. O episódio satírico diversionário (a relação entre o detetive e a estilista) é tratado com um humor tão discreto e proibido que nossos pés, em nenhum momento, deixam a terra. A presença desse ambiente familiar não obedece unicamente ao jogo de compensações: ajuda-nos a entender melhor a personagem, nos familiariza mais com a sua loucura, faz com que esta não seja loucura efetivamente, mas um certo desvio do espírito humano, um espírito cuja natureza talvez seja esta de girar em círculos. Toda a passagem em que Stewart é transformado em Pigmalião é admirável, a ponto de quase perdermos o fio da história, atentos a seguir os esforços desse homem para tornar uma mulher naquilo que ele acredita que ela seja, até percebermos que essa é a própria história. Toda a profundidade de Hitchcock está na forma, isto é, na renderização. Como o olhar de Ingrid Bergman em 'Under Capricorn', essa ausência de maquiagem - que é apenas uma maquiagem - deve ser vista e não contada.

E finalmente, nesse filme silencioso e gelado, ainda mais do que o beijo ardente entre o detetive e aquela que ele tenta em vão trazer de volta dos mortos, o impressionante discurso final do Stewart é quem introduz uma dimensão que até então estava curiosamente ausente nessa história de amor - aquela da paixão. Essa não é uma reverência retórica, mas uma passagem para o discurso, bem como o monólogo de Bergman em 'Under Capricorn'. Pouco importa que esse brilho chegue tão tarde, já que esse filme é atravessado por uma dupla corrente onde futuro e passado trocam incessantemente suas posições. Todo o filme, sob o brilho dessa acusação vibrante, terá uma nova cor: o que estava dormente despertará e o que estava vivo morrerá simultaneamente e o herói, finalmente triunfante sobre a sua vertigem, verá que tal triunfo foi para nada, encontrando nada além de vazio abaixo de seus pés.


É claro que existem outras reconciliações para além dessas que eu sugeri com os outros filmes do diretor também estrelados por James Stewart. Permitam-me mais uma, desta vez com o filme 'Strangers on a Train'. Sabemos o quanto esse último devia, não apenas em rigor, mas em lirismo à presença assustadora de um padrão geométrico duplo, da linha e do círculo. Aqui a figura - o génerico de Saul Bass a desenha para nós - é a da espiral, ou mais exatamente do helicoide. Linha e círculo são casados pelo intermédio de uma terceira dimensão: a profundidade. A rigor, encontraremos apenas duas espirais materialmente representadas ao longo do filme, aquela da mecha do cabelo de Madeleine que desce para a sua nuca, uma cópia da de Carlotta Valdès (e não devemos esquecer que é ela que desperta o desejo do detetive), e depois a escada subindo para a torre. De resto, a hélice será ideal, sugerida pelo seu cilindro de revolução, representado seja pelo campo de visão de Stewart seguindo Novak de carro, ou pelo abismo de árvores acima da estrada, ou pelo tronco das sequóias, ou até por este corredor que Madeleine menciona e que Scottie reencontrará em um sonho (um sonho no qual, admito, os padrões chamativos ecoam com uma graça sóbria sobre as paisagens verdadeiras), além de muitos outros padrões que exigem mais revisões para serem detectados. O corte da sequóia milenar e o travelling circular (na realidade sendo o tema que realmente gira aqui e não a câmera) ao redor do beijo ainda pertencem à mesma família de ideias, uma família numerosa com muitos parentes. Geometria é uma coisa, arte é outra. Não se trata de encontrar uma espiral em cada uma das cenas desse filme, como em enigmas de desenhos de folhagens ou mesmo como nas cruzes de 'Scarface' de Hawks (um desafio magnificamente aceito, mas ainda assim um desafio). É necessário que essa matemática deixe a porta aberta para a liberdade. Poesia e geometria, longe de entrarem em conflito, nadam juntas. Andamos pelo espaço da mesma maneira que andamos pelo tempo e que também andam nossos pensamentos e os dos personagens. Não são nada além de imagens de sonda, mais precisamente imagens que estão girando para o passado. Tudo é um círculo, mas o ciclo não fecha, a revolução sempre nos leva um pouco mais fundo na reminiscência. Sombras sucedem as sombras, simulacros os simulacros, não como as partições surripiadas ou como os espelhos refletidos ao infinito, mas devido a um tipo de movimento mais perturbador ainda, por este não ter solução na continuidade e possuir às vezes a suavidade do círculo e às vezes a nitidez da linha. Ideias e formas seguem o mesmo caminho, e é porque a forma é pura, bonita, rigorosa, surpreendentemente rica e livre que se pode dizer que os filmes de Hitchcock e 'Vertigo', em primeiro lugar, têm como elementos fundadores - além daqueles que sabem cativar nossos sentidos - as Ideias, no nobre sentido platônico do termo.

3 comentários:

  1. Para se ler e reler rezando (ou, tem razão, chorando...)

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  2. Para se ler e reler rezando (ou, tem razão, mesmo chorando...)

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  3. Para se ler e reler rezando (ou, tem razão, chorando...)

    Lafayette Villela.

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