quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Sem Essa, Aranha - Rogério Sganzerla (1970)


Sem Essa, Aranha é provavelmente um dos exercícios informais mais extremos da história do cinema mundial. A antiestética alucinante do filme, consistindo em longos planos-sequência com a câmera trêmula e uma aglomeração de atores e figurantes interagindo freneticamente uns com os outros (através de gritos desesperados, aforismos incertos, encenações ultradramáticas, expressões enigmáticas) contribui para a experiência hipnotizante que é assistir à obra: Não se pode fazer muitas afirmações sobre o enredo do filme, devido ao caos anárquico predominante em cada plano filmado por Sganzerla, diretor este que figura entre os mais prolíficos e geniais do cinema marginal.

O cinema marginal no Brasil surgiu como uma oposição estética e ideológica aos formalismos presentes no cinema hollywoodiano e como uma complementação às revoluções implementadas anteriormente no Cinema Novo. Diretores como Sganzerla, Bressane, Tonacci e Trevisan tinham como intuito principal a reformulação do conceito de cinema nacional - algo que representasse o Brasil mais fielmente do que os usuais filmes que exaltavam a beleza natural do país, ignorando os graves problemas sociais e ideológicos que a nação possuia.

O filme é de uma sensibilidade visual absolutamente impressionante, mesmo com a encenação caótica da obra teoricamente contribuindo para uma experiência mais atordoante que ascética. Curiosamente, em meio à dramaturgia confusa do filme, o diretor consegue retirar dali cenas verdadeiramente deslumbrantes, como a cena em que Helena Ignez e Zé Bonitinho dialogam na praia. Isso se deve muito às principais influências do diretor: Sganzerla prezava muito nomes como Welles e Godard (inclusive O Bandido Da Luz Vermelha, seu filme mais famoso, é frequentemente considerado uma versão tupiniquim de O Demônio Das Onze Horas).

No fim, o que resta não é apenas o delírio causado pela nebulosa crônica (quase surrealista de tão real), nem o estigma de tudo aquilo que havia sido exposto anteriormente, e sim uma sensação de que tudo aquilo compunha um quadro maior, um fiel retrato de um país em cacos, com suas falácias morais e sociais muito bem expostas. Puro Cinema. Puro Brasil.

sábado, 21 de junho de 2014

A Mulher Do Lago - Yoshishige Yoshida (1966)


A Mulher Do Lago, filme inserido no contexto do prolífico movimento cinematográfico japonês Nuberu Bagu, inicia-se com uma cena bastante sugestiva: uma mão feminina alçada ao alto durante uma relação sexual - cena cuja beleza pode facilmente ser associada àquela encontrada na beletrística, um certo deslumbre que vai se engrandecendo aos poucos pela sua desenvoltura visual, e que posteriormente vai se abrangendo para um conceito dúbio - não fica certo se esse movimento paradoxalmente brusco e sutil almeja representar pura e simplesmente uma explosão orgásmica ou denunciar uma espécie de suplício, suplício este caracterizado por um enclausuramento emocional que viria a ser discutido mais tarde na obra, estabelecendo posteriormente esse fluxo intrasponível de digressões incertas sobre as relações humanas que A Mulher Do Lago se propõe a destrinchar.

Algo interessante em A Mulher do Lago é como o filme se encaixaria perfeitamente no cinema contemporâneo, apesar de já ter quase cinquenta anos. O filme possui algo muito explorado no cinema atual - nomes como Apichatpong Weerasethakul, Tsai Ming-Liang e Manoel de Oliveira vêm a mente imediatamente - que é a exploração da perversão do olhar, o cinema adquirindo potência com a sua característica mais primitiva: o prazer em observar, a volúpia camuflada na qual consiste essa relação de voyeurismo proporcionada pelo cinema. Nessa obra prima de Yoshida, esse voyeurismo está caracterizado a priori na trama, que se inicia quando Mizuki, uma jovem mulher casada que tem relações extra-matrimoniais com um decorador de interiores, perde fotos dela nua, que caem nas mãos de um professor que já tinha uma certa obsessão voyeurística por Mizuki. Com isso inicia-se uma busca de Mizuki e Kitano (seu amante) pelas fotos, fazendo-os viajar até uma cidade próxima atrás do professor.

Nesse ínterim, uma mulher, amante de Kitano, os segue e inicia-se um conflito sutil entre os dois, conflito que se completa nesse verdadeiro caleidoscópio amoroso com os outros integrantes que permeiam essas relações, como o professor e o marido de Mizuki. O entrincheiramento presente nas relações de A Mulher do Lago é visível: a impressão que fica é que ninguém está completamente satisfeito nas relações que se estabelecem, e o caráter sufocante inexorável dos eventos que vão ocorrendo aparenta ir intensificando essa insatisfação.

Os planos de Yoshida são absolutamente deslumbrantes: a beleza devastadora da sua encenação, em conjunto com uma mise-en-scène impecável dão potência inestimável à essa obra prima, cujo valor reside em como todas essas características parecem complementar umas as outras.

segunda-feira, 17 de março de 2014

A Tortura Do Medo - Michael Powell (1960)


A Tortura Do Medo, filme lançado em 1960 junto com Psicose, quebra juntamente com o seu contemporâneo algumas barreiras relacionadas à representação da morte no cinema - inovação esta que justifica o fracasso comercial da obra na época do lançamento. O filme conta a história de Mark, um jovem perturbado que foi traumatizado na infância pelo pai. Devido a uma série de experimentos realizados por ele, Mark tornou-se um psicopata fascinado pela ideia da expressão mais genuína do medo, e inicia uma sequência de assassinatos brutais em que ele filma as expressões de suas vítimas quando elas estão prestes à morrer.

De um ponto de vista analítico, a crise freudiana do protagonista Mark pode aparentar um pouco confusa, porém em conjunto com a instigante diegese do filme - que apresenta uma interessante dicotomia entre sensibilidade e brutalidade, encontrando uma certa poesia na morbidez intrínseca aos atos de Mark - ela adquire potência e no fim o espectador já se encontra em uma posição privilegiada, em que a personalidade de Mark soa justificável, apesar de logicamente ser repudiável.

A Tortura Do Medo explora de maneira perspicaz a relação entre o espectador e a película, condicionada com a ideia de voyeurismo, bastante explorada em várias outras obras de imensurável qualidade na história do cinema (Janela Indiscreta, Alguém Me Vigia, Caché, ...). Aqui, a condição de voyeur do espectador atinge um patamar elevadíssimo graças ao elegante uso de luzes de Powell, juntamente com uma primorosa técnica de câmera subjetiva.

O filme faz parte de um seleto grupo de filmes que aparenta ter sido feito quase que exclusivamente para amantes incondicionais do cinema, como Adeus Dragon Inn, Blow Up - Depois Daquele Beijo e Conto de Cinema. É curioso o fato do apelo do filme atingir majoritariamente alguém que apresente interesse pelo cinema na sua definição mais primitiva: a ideia de voyeurismo, a representação imagética de acontecimentos e as diferentes percepções proporcionadas pelo contexto em que eles estão inseridos. Além disso, a curiosidade mórbida do protagonista, por mais sádica que possa aparentar, é algo inerente à qualquer ser humano: o medo da morte, a curiosidade pelo desconhecido.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Sangue Ruim - Leos Carax (1986)


Sangue Ruim é um misto de ficção científica e film-noir, com fortes influências da nouvelle vague na sua composição estética - característica esta que proporciona à obra caráter sublime, sendo esse deslumbre visual uma das maiores qualidades que o filme possui. A fotografia é belíssima, as referências são inúmeras, a trilha sonora é perfeitamente ajustada às cenas, o roteiro é poético e encantador: em suma, um filme típico de Leos Carax.

A narrativa toma lugar em uma França pós moderna, onde uma doença nova denominada STBO tem como transmissão o sexo sem amor, sem compromisso (clara alusão à epidemia do vírus do HIV, que a partir da década de 80 começou a se alastrar pelo mundo atenuando a liberdade sexual conquistada na década de 60/70 pela juventude mundial). Carax parte dessa premissa para expor uma dissertação que a priori pode aparentar desinteressante e datada, mas com uma diegese fílmica instigante e bela acaba atingindo potência imensurável.

A mise-en-scène evoca uma França fria e individualista, expondo um encarceramento social e sentimental que parece desolar a sociedade. Esse ambiente claustrofóbico associa-se perfeitamente ao solilóquio intrínseco às personagens da obra, que apesar de possuirem relações interpessoais aparentam estar sempre em desilusão existencial, demonstrando uma certa confusão sentimental renitente.

Impossível não se interessar também pelas fantásticas personagens de Julie Delpy e Juliette Binoche, que representam peculiaridades psicológicas e interpretações passionais que estabelecem um inexplicável paradoxo com as ideias do filme: contrapõe-se e se associam ao mesmo tempo à estética desesperançosa da obra.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Água Fria - Olivier Assayas (1994)


Olivier Assayas é um daqueles diretores que têm como intuito principal expor em seus filmes falácias morais e/ou sociais ignoradas pela sociedade em geral, usualmente por não apresentarem consequências negativas imediatas ou evidentes. Em Água Fria, ele disserta sobre a rebeldia (sem?) causa presente na juventude francesa pós 68 e sem demagogias pretensiosas propõe um exercício exasperante, com movimentos fluidos de câmera que evocam  a frustração desses jovens e a incompatibilidade ideológica deles com a sociedade.

O filme conta a história de um casal de namorados, Gilles e Christine (essa última em excelente atuação), que possuem graves problemas familiares e cometem pequenos delitos como atos de rebeldia contra a opressão silenciosa presente no sistema social do país na época. Todas essas relações são filmadas com a exímia sensibilidade estética de Assayas, que vai mostrando as mudanças no interior de suas personagens com cautela, expondo a asfixia psicológica que a sociedade imprime no casal.

Uma característica peculiar na obra é a presença constante de elementos estrangeiros na composição estética do filme - trilha sonora estrangeira, forte influência norte americana no cotidiano da sociedade setentista francesa - que remetem à uma perda de identidade, sendo este um dos fatores para a desilusão existencial das personagens, incapacitando-as de se relacionar com o mundo exatamente por não se sentirem parte do mesmo.

No fim, resta a solidão - que sempre esteve lá, apenas escondida no meio de tantos conflitos, abafada com a voracidade silente presente na relações interpessoais do filme. A última cena é belíssima, sintetiza toda essa incompreensão ontológica  presente na juventude, esse grito silencioso de desespero que decorre do ser. Essencial!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Mal Dos Trópicos - Apichatpong Weerasethakul (2004)


Um dos melhores exemplares do cinema sensorial contemporâneo, Mal Dos Trópicos é um filme que disserta sobre o real e o fantástico, que dividem a tela com naturalidade. O diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, famoso pela sua overdose de lirismo e idiossincrática habilidade de deslumbrar, nos presenteia com uma obra que exalta o pálpavel até uma condição de sensível, mimetizando suas angústias e prazeres individuais em planos amplos, de força inestimável e excelência estética.

Algo interessante nos filmes de Apichatpong é como o fantástico constantemente resulta em uma pregnância que enriquece o banal, o cotidiano. O valor do fantástico não é meramente apuramento estético, ele funciona como uma maneira de exprimir a memória e as lembranças que nos compõem - a imaginação aqui funciona como uma realidade psicológica. Também não é à toa o fato do diretor tailandês ter estreado no audiovisual com a videoarte: as heranças estéticas que ele conquistou nos trabalhos iniciais foram imprescindíveis para o sucesso nos seus filmes recentes, que flertam constantemente com conceitos da videoarte. Isso traz uma fruição ao objeto artístico, uma certa sutileza na interpretação e uma pretensão positiva que elevam o filme à condição de essencial.

O filme conta a história de um casal homossexual tailandês composto por um soldado, Keng, e por um camponês, Tong. Durante a primeira parte do filme, acompanhamos o cotidiano dos dois, durante sessões de cinema, viagens de ônibus e diálogos informais. A primeira parte, naturalista, um tanto bucólica, apresenta a essência do que viria a ser discutido - ou melhor, sentido - na segunda metade do filme, onde a narrativa deixa de remeter ao convencional, e a atmosfera vai ficando mais densa, claustrofóbica, e o filme alcança seu ápice estético e intelectual, com uma narrativa fragmentada passada em uma selva e uma insólita trama que vai deslumbrando conforme vai se estendendo até seu desfecho sensacional.

No fim, resta apenas a selva - e uma melodia minimalista que vai sendo incorporada melifluamente em nossos psicológicos conforme a sequência imagética vai sendo cuidadosamente construída. No fim, resta apenas uma lembrança suave do discurso moral do filme, que é exaltado ao sublime através de sua sutileza.

"Você escuta?"

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Plataforma - Jia Zhangke (2000)


"A plataforma longa e vazia. A espera parece interminável. Os grandes vagões estão carregando... Meu amor de vida breve. A plataforma longa e vazia. Solitários, só podemos esperar. Todo o meu amor indo embora. Nada há no trem que vem. Meu coração espera, espera para sempre... Espera para sempre..."

Jia Zhangke é um dos cineastas mais importantes da contemporaneidade. Não apenas pela sua inovação estética - minimalista na abordagem imagética e fortemente crítica no extra campo de suas obras - mas também pela capacidade do diretor de expor as falácias da China moderna sem tornar suas obras pessimistas (a priori), pretensiosas ou maçantes. As bruscas mudanças culturais no país são apresentadas sutilmente, assim como as mudanças psicológicas de suas personagens, que vão sendo reveladas com cuidado cirúrgico e amadurecidas lentamente.

Em Plataforma, o diretor expõe as mudanças sociais, ideológicas e principalmente culturais que a China sofreu durante o fim da década de 70 e ínicio da década de 80, quando as alterações impressas no oeste do país durante a Revolução Cultural foram atingindo o interior, e uma compania de teatro que anteriormente fazia músicas de cunho coletivista, exaltando gêneros musicais majoritariamente chineses, que vai vagarosamente tendo sua estética artística alterada por censuras sociais e políticas - a cultura pop de origem ocidental vai varrendo o país, minimizando a cultura essencialmente chinesa.

O filme expressa um sentimento de insegurança cultural, de perda de referências, que se intensificava na China através da afirmação das individualidades advinda do fortalecimento da dinâmica capitalista na cultura chinesa. A censura do Partido (não apenas artisticamente, mas politicamente também) acaba gerando uma auto censura endêmica na sociedade - a estrutura intelectual do país é fragilizada.

Jia Zhangke filma em planos amplos, demorados, cuidadosamente construídos, expondo personagens idealistas tendo seus planos futuros lentamente erodidos pela dura realidade social do país. A cena em que a dançarina, sonhadora, dança sozinha em seu quarto é um dos momentos mais belos do cinema contemporâneo - é fantástico como as personagens de Plataforma permanecem alegres, vivas, apesar do sofrimento silencioso que permeia suas ações.

Exemplar contemporâneo do cinema político, Plataforma é, acima de tudo, um filme sobre a vida, e como é importante manter-se intelectualizado e crítico em uma sociedade brutal. É uma elegia à existência humana, à individualidade, ao ideal coletivista em contraponto com a voracidade moral de um país confuso e desenfreado - uma das maiores obras do novo século.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

35 Doses De Rum - Claire Denis (2008)


Em 35 Doses De Rum, Claire Denis estabelece um paralelo crítico sociopolítico entre as relações familiares de um núcleo social, contidas na diegese fílmica de 35 Doses De Rum, com a sociedade francesa moderna, brevemente apresentada no filme, porém muito bem explorada no extra-campo da obra (a França é filmada na periferia, com músicas africanas, panelas de arroz japonesas, bares jamaicanos - muito distante do cosmopolitismo normalmente associado ao país). Retratando magistralmente pequenos conflitos familiares e expandindo seus conceitos, a diretora foi capaz de criar uma obra de fortíssimo valor estético e crítico - 35 Doses De Rum é uma das obras mais sensíveis do cinema contemporâneo.

O filme inicia-se com belíssimas imagens de um trem em movimento, expandindo posteriormente o valor dos trilhos do trem para proporções metafísicas (estabelecendo forte relação com o filme Pai e Filho, filme de 1949 do genial Yasujiro Ozu). Mas, enquanto no filme de Ozu esse trem é filmado a partir de plataformas, no filme de Denis estamos dentro do trem, olhando para os trilhos. Uma diferença estética relativamente sutil, porém que adquire valores reflexivos distintos na diegese dos filmes: enquanto em Ozu as análises humanas tendem a ser mais objetivas, aqui elas adquirem subjetividade. As personagens de 35 Doses De Rum transitam à margem dos trilhos, em conflitos silenciosos que falaciosamente tendem a ser creditados como inofensivos, porém que caracterizam uma crise sutil naquele núcleo de amizades. E essas crises sociais apresentadas microscopicamente são por sua vez relacionadas com crises sociais macroscópicas - adquirindo reflexão acerca de valores de hierarquia até entre países.

Mas a diretora não se contenta em estabelecer essa fantástica comparação: ela vai mais a fundo, e questiona - não necessariamente impõe - até que ponto a hierarquia sistemática mundial é dispensável (ela não nega a demagoga imoralidade no sistema, nem exalta a inércia, ela apenas defende que reações extremistas não são uma solução). Uma das personagens mais importantes do filme, um amigo do protagonista que também é condutor (condição apresentada não ao acaso) encontra-se desiludido por estar aposentado e não saber o que faz da vida após o fim do seu trabalho nas plataformas de trem. Não revelando detalhes sobre a obra, deixemos assim: o filme discute a dependência do sistema na vida das pessoas. É comum as pessoas condenarem a maneira como a hierarquia se dá, seja ela política ou social, porém raramente elas se dão ao trabalho de analisarem como ou por quê essas relações se estabelecem. Assim como em O Demônio Das Onze Horas, 35 Doses de Rum discute os limites da liberdade, demonstra o quão ilusório é o livre arbítrio e como essas relações - sejam elas amorosas, familiares, laboriais - possuem uma interdependêcia inegável.

Veja a personagem Joséphine: ela pode a qualquer momento abandonar seu pai e viver sua vida, mas ela não o faz: não por quê não quer, e sim por quê não pode. Ou por quê pode mas não quer? Olhe seu namorado: ele é livre para ir embora, até ensaia vender o apartamento, mas no fim do filme o vemos preso no mesmo sistema, seja por vontade própria ou necessidade social.

Agora o filme não se demonstra totalmente inerte em relação às críticas apresentadas: chega em um ponto do filme em que a família tem que confrontar o passado. A contingência da morte no sentido mais analítico não é o problema - o gato vai para o lixo depois de morto - mas sim a ausência que gera consequências devastadoras. O vácuo entre o corpo e a câmera de Denis remete ao vazio existencial das personagens - os problemas acabam sendo expostos quando a crise se alastra. E no fim as 35 doses de rum são tomadas, celebrando o que permanece tangível: a vida.

As personagens estão em constante conflito, porém raramente este é expresso verbalmente, adquirindo grande subjetividade. A relação entre o pai e filha é sufocante, mas é inegável o amor incondicional de ambos. Esse paradoxo estabelece relações inclusive com a vida - a dicotomia metafórica associada aos trilhos do trem está aí.

Agora o que realmente torna o filme uma obra prima de valor inestimável para o cinema contemporâneo é a sensibilidade da diretora em filmar a história. É notável como ela é capaz de expor o que há de mais condenável na psicologia humana e ao mesmo tempo exaltar a humanidade como um todo, mantendo sempre uma beleza incompreensível permeando todo o sofrimento existencial nas suas tramas. Basta pegar qualquer cena de olhares entre as personagens para saber que se trata de uma obra maior do cinema.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Tabu - Miguel Gomes (2012)


Mais do que apenas expô-las, o papel do cinema em relação às memórias é eternizá-las. Tabu é um filme que oferece um retrato sensível dos interstícios da saudade e da memória, que circunstancia a ontologia da lembrança e que pormenoriza a culpa e o arrependimento em uma sobreposição dos mesmos, sendo ambos justificados por uma constante noção de que as intenções contidas nos atos das personagens eram justificáveis. A direção de fotografia é esplendorosa, o filme é filmado na sua integridade com uma sobriedade contagiante, em contraponto com a sensibilidade inexoravelmente encontrada na obra. A direção é inventiva, insólita, comovente, genial - assim como em "Aquele Querido Mês De Agosto", Gomes nos presenteia com uma das melhores obras dos últimos anos.

O filme é referência ao filme "Tabu", dirigido por F. W. Murnau em 1931. O filme de Gomes, assim como o de Murnau, trabalha com o formato díptico, porém ele inverte as duas partes: inicia-se com Paraíso Perdido para posteriormente apresentar Paraíso. O motivo da inversão é claro: o filme apresenta inicialmente Aurora, a protagonista, vivendo melancolicamente em um apartamento em Lisboa com a sua empregada cabo-verdiana Santa. Já idosa e doente, ela devaneia sobre sonhos que metaforizam relações humanas e lamenta o seu fim de vida irrisório. Já no leito de morte, ela chama por um homem chamado Ventura incessantemente. Pilar, sua vizinha e única amiga, decide ir atrás do homem, o encontra e a partir daí ele começa a contar para ela e Santa sobre o Paraíso Perdido, que nos é apresentado na segunda parte do filme, sendo esta segunda parte toda narrada - uma das narrações mais sensacionais dos últimos tempos, por sinal, funcionando diegeticamente com a belíssima progressão imagética em preto e branco que é apresentada magistralmente por Gomes.

O filme disserta sobre o valor da memória, exaltando-a e retratando em paralelo a inocência inerente aos atos insensatos de um casal apaixonado. O filme demonstra a relação de causalidade que há entre a memória e a frustração, expondo um retrato único da potência da nostalgia humana, dimensionando a saudade do protagonista por meio daquelas imagens mudas. Razoavelmente, não é isso que o cinema é? Assim como na fotografia, a força motriz do cinema está na imagem, a beleza não está intrinsicamente relacionada apenas à história, ou às interpretações, roteiro, arte, mise-en-scéne - ela está na imagem em si. O cinema surgiu da construção e manipulação da imagem, eternizando memórias de maneira singularmente pessoal, evocando com sucesso há mais de 100 anos os valores mais primitivos do homem - seja o amor de Ventura e Aurora, seja a culpa pelo crime que ocorreu, seja a nostalgia daquele paraíso proibido, seja o que for - a potência está na imagem.

Azul é a Cor Mais Quente - Abdellatif Kechiche (2013)




De acordo com Sartre, a existência precede a essência. Afinal, a subjetividade inerente às crises existenciais humanas não pode ser facilmente exposta objetivamente, e mesmo que fosse possível, os impactos sociais causados pela exposição da essência humana provavelmente culminariam em uma estigmatização e incompreensão desta, causada exatamente pela unicidade da subjetividade encontrada no receptor (e no emissor). Essa existência, o visível, o que realmente está lá, é caracterizada pela liberdade da qual os homens usufruem para construírem suas vidas sociais.

Na sociedade contemporânea, com o enfraquecimento e/ou atenuamento da doutrina religiosa na juventude, juntamente com a crescente percepção da subjetividade encontrada na moralidade, surge uma nova era de valores individuais caracterizados por percepções pessoais do mundo, e essa abrangência da moralidade atualmente sintetiza uma sociedade multifacetada. Essa liberdade moral desabrocha uma essência outrora ignorada, que como resultado gera uma depressão em massa que caracteriza a juventude de hoje. Essa depressão vem da solidão do ser contemporâneo, afinal, com a essência parcialmente descoberta e a total noção da incompreensão do resto do mundo dos seus sofrimentos, ideologias e crises pessoais, o jovem sofre. Com a falta de um sentido claro na vida e um pessimismo renitente em relação às ações humanas, esse jovem entra em conflito não apenas psicologicamente e socialmente, mas existencialmente também, ele perde a fé na vida em si.

O filme "Azul é a Cor Mais Quente" disserta sobre a essência, a liberdade, a existência, o amor, o ser. Adèle, a protagonista do filme, é uma bela menina de 17 anos que vai descobrindo aos poucos a sua existência, muitas vezes até com insipiência. Suas relações amorosas com os meninos de sua classe acabam se mostrando vazias, sem valor, e geram na jovem uma forte depressão por se sentir deslocada. A situação vai piorando conforme ela começa a questionar o por quê dela ser tão diferente das outras amigas, o por quê dela ter tanta dificuldade de se relacionar com outros meninos (principalmente sexualmente).

Chega um momento no filme que ela é beijada por uma amiga, e esse beijo desperta nela um prazer novo, que começa a fomentar uma ideia da possibilidade dela ser homossexual. Com o tempo, ela conhece Emma, uma menina um pouco mais velha que ela que cursa Artes e tem o cabelo tingido de azul (a cor azul demonstra fortíssima conexão com o ideal de liberdade característico do filme, e é altamente explorado por Kechiche) e inicia um relacionamento com ela.

A história se desenrola pelas 3 horas de duração do filme (que passam de maneira incrivelmente rápida), e graças à direção absolutamente genial do tunisiano Abdellatif Kechiche, é construído um dos retratos mais íntimos e profundos da história do cinema.

A atuação é simplesmente impecável. Não existem palavras que possam descrever o quão extraordinária é a performance do elenco, principalmente do casal de atrizes, que comovem de maneira sublime o telespectador. As cenas de sexo (fantásticas, por sinal) são vívidas, da câmera parece escorrer prazer, calor e paixão. Além das cenas de sexo, a maneira como as atrizes são filmadas de perto criam uma conexão muito forte com o psicológico das mesmas, você as compreende e ao mesmo tempo tem noção da incompreensão que temos delas - no fim, a única certeza é o sofrimento intrínseco no olhar de Adèle e nos seus passos trêmulos, enquanto a desconstrução total de sua vida se consolida.

A ideia de estar sozinho no mundo, a constante necessidade de contato e compreensão alheia de nós mesmos, paradoxalmente com a nossa vontade de preservação do nosso interior, a existência, a dor, o amor, a essência, a vida em si - tudo isso proporciona uma experiência única para quem assiste ao filme. Uma obra prima!